sábado, 31 de maio de 2008

A PEQUENA GUARDA


Vale a pena conferir os quadrinhos do David Petersen: THE MOUSE GUARD, que acaba de chegar ao Brasil pela Conrad, com título "Pequenos Guardiões". Num primeiro olhar, nada além de ratinhos engraçadinhos, ainda que armados, e de forte apelo infantil. Naturalmente. Mas não se trata de uma história para as crianças (apenas). Jovens e adultos irão ser cativados pela pequenina guarda de ratos que têm as histórias, peripécias, tramas e intrigas contadas numa interessante coleção de quadrinhos cheia de suspense mistério. Numa época com ares medievais, esses "Pequenos Guardiões" são os defensores de um mundo quase imperceptível dos ratos, que habitam vales, cidades e costas, travando suas batalhas, jogos políticos e, simplesmente, sobrevivendo. Sob os nossos olhos.

A DOR DE EXISTIR


Nunca paro de pensar a respeito da dor de existir. Até disfarço, finjo não me importar tanto, ensaio comportamentos banais do tipo, "viver o dia de hoje como se fosse o último e está tudo bem". O fato é que é um pensamento diário, quase-contínuo, reflexão de rotina, ora deixada de lado em função de alegrias momentâneas ou preocupações esporádicas. Na verdade, acho que "vestimos" a melancolia, às vezes como luva, chapéu, cachecol. Às vezes como traje completo. É coisa do dia, como tempo nublado, dia ensolarado, chuva passageira. Mudamos com o tempo e a melancolia nos veste de acordo. Nem todos pensam sobre isso com o mesmo grau de atenção e por isso a felicidade é tão relativa e superficial. É tudo uma questão de “se importar”; ou melhor, o “quanto” se importar. Aqueles que mergulham no entendimento e percepção das coisas certamente seguem o trajeto mais difícil, enquanto aqueles que sobrevoam essa “dor de existir” vivem como se não houvesse o silêncio, a solidão, a angústia, a falta de compreensão, a sensação de não pertencer, a indignação diante da inércia que às vezes somos acometidos, o terror de ver o tempo passar, como contagem regressiva, na certeza inquestionável que muito será deixado para trás e que haverá lágrimas e despedidas inevitáveis. É uma dor de indignação, que sentimos quando ninguém nos compreende, que não podemos ser deixados em paz, "existindo". É uma dor que faz a gente sonhar com ilhas e planetas distantes, onde há um refúgio de tudo, de todo o medo e insegurança, onde não precisamos nos encaixar, nos adaptar. Mas não encaro essa dor como algo de todo ruim. Longe disso, na verdade. Acho que é uma maldição e uma bênção, cunhadas como uma moeda que tem dois lados. E que carregamos no bolso, todos os dias. E que brincamos, como se tentando a sorte: cara ou coroa. Por que desta maneira enxergamos o mundo com lentes mais apuradas e a alma, eternamente cicatrizada/cicatrizando, vai aprendendo a sentir o que ninguém sente, ler o que ninguém ler e, assim, viver o que ninguém vive. É o que nos ensina a dor de existir: o benefício de contemplar o universo onde há o nada. E aproveitar o caos e não temer o escuro. É que passamos muito pouco tempo neste mundo sem nenhuma certeza se há um “lado de lá”, se vamos para algum outro lugar depois que tudo estiver acabado. Então corremos. Corremos para aproveitar ao máximo a jornada. E talvez por isso soframos tanto. Mas, afinal, quem não sofre?

MANTENDO ACESA A CHAMA


Cinema e música, na minha opinião, fazem o casamento perfeito: sintonia e cumplicidade totais, para emocionar, comover, tocar o coração. Cinema e música se completam, formando um festival de emoções. Imagem e som numa equação quase sempre precisa para nos fazer sentir alguma coisa. Por isso adoro o filme “Ainda muito loucos” (Still Crazy), que completa dez anos e continua sendo o máximo. Por alguma razão nos apaixonamos por esta banda dos anos 70, a Strange Fruit, que certamente nossos pais teriam gostado, mas que hoje é um grupo de cinqüentões, com muita nostalgia, doce decadência e tremendo apego ao tempo que passou. Adoramos as suas canções que, como toda boa música, ficam, são para sempre, atravessam as gerações. Cantarolamos os refrões e ficamos com aquela sensação de “gostaria muito de ter ido neste show”, ou coisa assim. Por alguns instantes nós temos a certeza de que aqueles caras, “ex-doidões”, realmente formam esta banda maravilhosamente fictícia, em tour pelos bares mais suspeitos da Holanda. “Ainda muito loucos” é, naturalmente, uma comédia sobre músicos que um dia foram famosos e que tentam sair da sombra que a vida os colocou na busca de uma nova chance, vinte anos depois. Isso é óbvio e, neste sentido, encontramos risadas óbvias no caminho. Mera superfície. Este é, na verdade, um filme humano, poético, imensamente comovente, sobre o nosso apego ao que marca as gerações (mesmo aquelas que sequer vivemos). É uma história sobre a misteriosa ligação espiritual que homens podem formar, seja na guerra ou numa banda de rock. Homens que se amam e se odeiam, mas que, por alguma razão, não deixam de seguir juntos, adiante. É um filme sobre esta mágica relação que temos com a música, sejamos músicos ou não, famosos ou não, por que ela narra nossa vida, acompanha nossa existência, expressa um pouco do que há dentro das nossas almas. Uma verdadeira (e despretensiosa) ode a esse amor, a esse amor múltiplo, que temos por quem modifica as nossas vidas, pela trilha sonora que nos acompanha, pelos momentos inesquecíveis que vivemos e que desejamos ter de volta. É um daqueles filmes que assistimos com um sorriso no rosto que se recusa a desaparecer. E quando menos esperamos, lá na frente, notamos que o sorriso é acompanhado por um nó na garganta que nos umedece os olhos sem esforço. E nem por isso comédia vira drama. Não precisa. É emoção genuína, mesmo, de quem assiste o melhor show da melhor banda do mundo (as nossas bandas são sempre as melhores do mundo, afinal). Aquela banda que sonhávamos um dia se reunir novamente. E nos créditos finais, ficamos com uma vontade acanhada de nos abraçar uns aos outros, enquanto procuramos um isqueiro para acender e acenar, em justa homenagem. Agradecendo pela chama, “que continua acesa”.


sábado, 17 de maio de 2008

POR QUE ´CRASH´ É SIMPLESMENTE TÃO BOM


Por mero (e ignorante) preconceito eu deixei de assistir a "Crash", no tempo ideal. Nem os prêmios do Oscar (como melhor filme e roteiro) me convenceram. É um daqueles (tantos) casos em que antipatizamos gratuitamente com filme por nada, bobagem. Não sei. Não fui com a cara do pôster, acho (a gente não tem disso?), não simpatizei muito com o elenco e fiquei com a impressão de que era mais um daqueles filmes meio lentos, meio chatos, meio politizados demais (nada contra, alás - adoro filmes lentos, politizados e meio chatos). Coisa astral, quem sabe, de momento. A questão é que eu não quis saber muito de "Crash". Até ontem. Assisti esse filme com arrependimento, mágoa e até raiva de mim mesmo por não tê-lo visto antes. É precioso, primoroso, humano, visceral, comovente. Fiquei arrasado, tocado, impressionado por este filme que não apresenta absolutamente nada demais, nenhuma novidade. Na verdade, "Crash" fala do óbvio: de como estamos nos afastando uns dos outros, de como nos tornamos violentos, antipáticos, intolerantes, preconceituosos; de como sentimos raiva de graça, de como nos tornamos frios, de como simplesmente deixamos de nos importar. Através de uma rede belamente construída de histórias paralelas, de personagens que se cruzam e misturam suas vidas anônimas na passagem de apenas um dia. Não há muito a dizer, na verdade, sobre "Crash". É um filme belo, maravilhoso, obrigatório, que merece todos os elogios pela sua capacidade singular de nos expor no espelho, nus, e nos socar o estômago ao nos apresentar exatamente o que nos tornamos na cadência egoísta, ambiciosa e individualista das nossas existências. Mas é um filme também sobre amor, esperança e coragem. Por que no fim, como tudo na vida, as coisas podem dar errado, mas também podem dar certo. Como saber.

sábado, 10 de maio de 2008

SOB A SOMBRA DE UM COLOSSO


O filme "Reine sobre mim" está longe, muito longe, de ser um bom filme. Mas algo nele é absolutamente original. Pela primeira vez (segundo me lembre) um filme trata dos videogames como arte, pelo menos como forma de dar vida a um personagem. Nos filmes, geralmente, vemos os personagens capturados por livros, poemas, obras de arte, músicas ou mesmo outros filmes. Neste, o personagem vivido por Adam Sandler é fascinado, justamente, por um jogo: SHADOW OF THE COLOSSUS (PS2), um dos mais originais jogos já criados nos últimos tempos. Nele, vivemos o drama de um jovem guerreiro, de alguma terra mágica. Determinado a salvar a vida de uma moça misteriosa, ele aceita enfrentar uma perigosa - e quase impossível - jornada de exterminar 16 gigantes (colossus) espalhados pelo reino. Sob formas, aparêcias, características e desafios diferentes, os monstros são como prédios a serem escalados, com pontos frágeis que, quando atingidos, os fazem sucumbir ao chão como torres desmoronadas. O jogo é original por que é EXATAMENTE e APENAS isso. Não há inimigos menores ou outra coisa a se fazer que não caçar os gigantes em todos os cantos do reino. Um após um, fazendo-os ruir, para conquistar o direito de trazer de volta a vida uma pessoa que se foi. Um jogo silencioso, mágico, de luzes, sombras e névoa, que nos coloca, sem esforço, dentro de uma atmosfera que temos certeza existir em algum lugar. E que nos obriga ao compadecimento, porque partilhamos daquela solidão vivida pelo jovem guerreiro e seu fiel cavalo Agro, enquanto cavalgam planícies e bosques, em busca do próximo confronto. E sob a sombra de um colosso desvendamos um mundo de escuridão como quem caminha por corredores escuros com a orientação da chama acanhada de uma vela. Força e fragilidade, equilibradas na pele machucada de um herói menino que não desiste nunca. Obrigatório.

MELANCOLIA, DEVANEIOS E CARTÕES POSTAIS


"Beijo roubado" (My Blueberry Nights) é um filme doce e melancólico, quase azedo e recheado de nuances, como uma boa fatia de torta de mirtilo. Esta, definitivamente, não é a torta mais popular de todas, por que não é deliciosamente óbvia como o cheesecake ou outra qualquer. E essa metáfora serve para este filme precioso do diretor Wong Kar-wai. Como um videoclipe, o filme não faz questão de ser linear, tampouco inflexível nos planos, distorções e enquadramentos, o que nos dá uma curiosa e original narração. No fim das contas, uma história de amor como todas as outras, marcada pelas idas e vindas da vida, em que tudo é circular, e que acabamos sempre voltando para onde partimos, como uma catarse de encerramento. Assim, acompanhamos a história de Elizabeth (bem interpretada pela estreante Norah Jones) que sai de Nova York, desiludida por um coração partido, e após se lançar na estrada e conhecer cidades americanas, trabalhando como garçonete em bares e restaurantes, cronicando seus passos com cartões postais sem endereço, volta para seu ponto de partida: um café sem pretensão, de um inglês (Jude Law) que, também ele, tem sua história de idas e vindas e corações partidos. A discussão dos dois sobre a jarra de chaves perdidas, esquecidas ou simplesmente abandonadas, é pura filosofia e devaneio. Ao longo das quase duas horas, temperos, sabores e sensações diversas vão fazendo deste filme uma receita (difícil, é verdade) mas diferente, de observação da vida como ela é, como uma construção de momentos variados, que se sobrepõem enquanto o tempo passa, marcando-nos com doce melancolia, decepções, alegrias fugazes e o desejo indomável de irmos a algum lugar, encontrar um destino. Nem que esse destino seja, justamente, onde já estamos.