sábado, 19 de dezembro de 2009

O JARDIM JAPONÊS



Angela acordou com uma sensação imperativa de limpeza. Precisava limpar tudo, livrar-se de toda a sujeira que conseguia enxergar pelas paredes, móveis, tapetes e quadros. Tudo parecia revestido de limo, poeira e terra. Algo, uma força maior do que ela mesma, a impelia por todos os cômodos daquela casa antiga. Sentia-se em dívida com aquela herança. Deveria zelar pela imensa casa da colina, notória pelos bailes de outras épocas e fantasmas de dias mais recentes.

Os nativos não arriscavam sequer cruzar a vereda que cortava o grande portão de ferro. Era um caminho prático, que conduzia à pequena cidade com extrema rapidez. Não, nem crianças, nem velhos, nem moças, ninguém se autorizava a cortar caminho por ali. Evitavam a casa como quem evitava o diabo. Preferiam descer pelas montanhas, era mais seguro. Havia algo ali, para dentro dos portões caídos e enferrujados. Algo velho, muito velho, que sussurrava por entre a grama alta e o barulho das tábuas que se retorciam como se conversassem umas com as outras. Havia algo ali. Algo sinistro, que fazia as mais velhas arregalarem os olhos e mastigarem cada palavra ao dizerem que “aquela era uma casa de mortos”.

Mas aquela casa era tudo que restava à Angela. Seu marido a havia abandonado. E seus filhos, já deixando a universidade, haviam esquecido dela há anos. Tudo o que sobrou era a casa de seu velho tio, meio-irmão de sua mãe, um famoso fazendeiro de tabaco que havia perdido tudo em dívidas, jogos e mulheres. Alguns ainda a disseram que tudo foi destruído pelo seu atrevimento insistente em “mexer com forças que não deviam ser incomodadas”.

Naquela manhã, no entanto, era como se um exército de sombras e vozes e ventos a arrastassem por toda a propriedade. Sentia-se sem pés, flutuando a um palmo do chão. Observava as árvores mortas, um balanço preso por apenas por uma corda, um velho poço, fontes dágua com anjos desfigurados pelo tempo e restos de móveis do que um dia foi um jardim.

Então se viu parada diante de um gigantesco relógio de parede. Desperta do transe, sentiu um ímpeto violento de derrubá-lo no chão. O barulho ensurdecedor fez os cachorros latirem ao longe. Mas isso pouco importou à Angela que, caminhando descalça sobre restos de vidro, ponteiros e engrenagens ainda agonizantes, deparou-se com um túnel escuro, aberto grosseiramente na parede, mas perfeitamente escondido atrás do relógio, quando ainda inteiro.

Sem pensar duas vezes, abaixou-se e, no limiar de engatinhar, enveredou-se pelo buraco escuro, como uma fenda no tempo. Não conseguia, sequer, enxergar suas mãos. Rastejava. Sentia os joelhos sujos e as mãos úmidas, enquanto prosseguia. E não enxergava absolutamente nada. Nem ouvia nada. Era como se estivesse só, completamente só, num espaço sem donos, sem regras, sem física. Apenas tinha o desejo de continuar. Aos poucos, começava a sentir pequenas pedras por entre seus dedos, e um sopro de vento ameaçava tocar o seu rosto. Até que começou a enxergar um ponto de luz, quase se perdendo no infinito. Foi quando teve a certeza de continuar.

Num determinado momento, sentiu que o seu túnel ficava cada vez mais estreito, apertando seu corpo contra as paredes molhadas, que já a sufocavam. Mas nem por isso deixou de continuar. Seu queixo começava a roçar no chão, quando pôde enfim avistar uma pequenina janela. Havia chegado ao seu ponto de luz. Forçou com o punho fechado a pequena abertura por onde mal passaria uma criança pequena. E arrebentou as dobradiças com a sua determinação.

Espremeu-se como uma enguia e, com angustiosa dor, conseguiu se projetar para fora daquele ventre de barro e pedra. E assustou-se com o silêncio que a circundava. Estava de pé, num jardim japonês, branco, estranhamente sem cor alguma e em silêncio abissal. Grama branca, pedras brancas, lanternas brancas, cerejeiras brancas, céu branco, sol branco. Seu corpo estava branco, e seu cabelo, vestido, unhas e pés e mãos. Tocou-se como quem toca uma miragem e percebeu que tudo aquilo era real. Brutalmente real.

Angela olhou para trás, procurando o seu caminho de retorno. Mas ele havia se fechado, como uma ferida cicatrizada, que deixa evidente a silhueta de corte recente. E desmaiou, sentindo vividamente cada centímetro do seu corpo batendo contra o chão branco, sem cheiro nem temperatura. A fina areia a envolveu e ela pôde sentir mãos delicadas correndo pelo seu cabelo, pescoço, rosto. Não quis mais abrir os olhos. Deixou-se afundar, lentamente, sucumbindo como uma pedra que corta a água do mar no seu trajeto para o fundo. E sentiu-se em paz.

* * *

“Esta noite tive o sonho mais estranho de minha vida”, disse Angela ao seu marido que, fechando a porta de casa, sequer olhou em sua direção. “Tenha um bom dia, Angela”, disse apenas, “não me espere para o jantar”.

Conformou-se, como sempre. Limpou a mesa das migalhas de pão e lavou toda a louça. Sobre a cômoda, ainda estavam as correspondências não abertas, desde o dia anterior. Para ela, apenas um envelope, de um escritório de advogados associados.

BLAKE, NORTHWEST & FUKUGAWA – ADVOGADOS ASSOCIADOS

* * *

Não havia quem não apreciasse a misteriosa arte de Eiko Yamasaki. Suas gravuras estampavam camisetas, postais e inspiravam diretores de cinema e estrelas pop. Seus motivos eram sempre os mesmos: mulheres desesperadamente sós, caminhando por jardins sem cor, povoados de sombras e fantasmas. Quando questionada sobre suas inspirações, tinha sempre pronta a resposta:

“Estas mulheres estão vivas. E habitam os meus sonhos, todas as noites”.

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