quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

ILHAS

Desde muito cedo eu soube que havia algo de ilhéu em mim. Lembro que deveria ter uns 8 anos quando uma imagem capturou meu olhar por muitas horas: um anjo, deitado sobre uma nuvem pequena, como se ela fosse um país. Não demorou muito para eu me apaixonar pelo "Pequeno Príncipe", tampouco. O fato é que eu sempre flertei com a solidão - talvez mais até do que eu deveria - como se assim eu conseguisse emular a ideia de habitar um país microscópico, um atol, um planeta, uma ilha. E apreciei os frutos disso em igual proporção que sofri com as suas consequências. É algo meio inevitável, acho. Um quê de antisociabilidade disfarçada sob sorrisos que dão a entender que o que mais desejo no mundo é companhia. Nietzsche disse, certa vez, "odeio quem me rouba a solidão sem me oferecer verdadeira companhia". E acho que ele sabia o que estava falando. Porque imaginamos algum tipo de verdade e conforto na ideia de estarmos cercados por pessoas, mas quem nunca se sentiu imensamente só na multidão? Aprecio o silêncio e a companhia, mas talvez seja rigoroso na combinação perfeita de ambos; deve ser isso. Não sei. É tudo muito subjetivo demais. Sei também que sofro, principalmente pelo fato de que não é algo sobre o qual tenho qualquer sombra de controle. É mais forte que eu. Da mesma forma que tenho rompantes de "abstinência de companhia" igualmente sinto o desejo de subir para a caverna e me entreter com as sombras que a luz de fora projeta nas paredes. Será melancolia? Será "personalidade"? Será que é algo assim, fácil de demonstrar, como uma fórmula? Talvez seja o fato de eu não ter tido irmãos ou ter convivido com muitos adultos desde cedo. E talvez não seja nada disso, porque às vezes tudo o que quero é a carona de pássaros imigrantes que me levem para perto de alguém. Acho, em verdade, que é um ofício. E que algumas pessoas são mais qualificadas do que outras nisso. A verdade é que quando mais me convenço de que sou ilha, eis que me afasto abruptamente deste teimoso comportamento insluar, como quem acena desesperadamente por resgate. E lembro de algo que li, há muitos anos; que, quanto mais eu penso que sou ilha, percebo que sou arquipélago.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

FALKLANDS

De repente, como num devaneio que me tomou abruptamente, senti uma necessidade iminente de conhecer as Falklands Islands. Assim, sem explicação.

"PRAIAS"

Sou um entusiasta confesso de filmes femininos, "filmes de mulherzinha". Não tenho nenhum pudor em colocá-los em minhas listas prediletas e de me comover com as suas histórias. Um destes filmes inesquecíveis é o clássico dos anos 80, "Beaches" ("Amigas para sempre"). Estrelado por Bette Middler e Barbara Hershey, "Amigas para sempre" narra a história de duas mulheres, Cecee Bloom (Middler) e Hillary Whitney (Hershey), que se conhecem ainda crianças e atravessam uma vida inteira juntas, seja  se correspondendo por cartas ou voando em socorro uma da outra. Eventualmente, as duas se reencontram e seguem juntas uma série de alegrias, decepções, conquistas e brigas. Como acontece na vida real, afastam-se, sem nunca se esquecerem. E acabam se achando, novamente, por causa de um evento que faz Cecee mover o mundo para reencontrar sua amiga. É um filme "bobo", claro, mas sincero e comovente na adaptação do romance de Iris Rainer. Uma história comovente sobre como tanta coisa se perde, na passagem da vida, e como tantas outras permanecem. É onde mora a beleza e o encanto deste filme. A relação sincera de duas amigas, que se conhecem ao acaso numa praia de Atlantic City, mal sabendo que seriam as pessoas mais importantes de suas vidas. E no ocaso, em outra praia não menos importante, são obrigadas a dizerem adeus. É um filme para se assistir num domingo qualquer, como eu fiz, apreciando os sorrisos e os apertos na garganta sem pressa.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

COMO TODO MUNDO, RITA HAYWORTH SÓ QUERIA SER AMADA

TRANSLUCIDEZ

Ela levantou cedo, como fazia há setenta e nove anos. Abriu vagarosamente a janela e observou a rua por alguns instantes. O dia ainda tinha cor de baunilha e poucas pessoas e carros já podiam ser vistos. Respirou fundo, enchendo os pulmões daquela seiva transparente e sentiu-se viva, cheia de esperança. Tinha certeza de que aquele dia seria especial. Não só porque era o seu aniversário, mas porque estava confiante de que a sua vida seria melhor a cada novo dia. Não tinha mais medos. Não se sentia impotente. De pé, no assoalho daquele quarto em que havia vivido por quase meio século, tomou-se de pensamentos inebriantes. 

“Sou jovem. Tenho tudo ainda pela frente. Sou imortal”.

Lentamente dirigiu-se para o toalete. A camisola, amarelada, era arrastada pelo chão, evidenciando alguns velhos furos de traças e rasgando novos por entre as lascas de madeira no chão desgastado. Descalça de um pé, ela quase desfilava enquanto caminhava. 

“Hoje quero estar linda como uma estrela de cinema. Como Ingrid Bergman”.

Encostou a porta e se despiu vagarosamente. Os azulejos desbotados estavam cheios de rachaduras e limo. Não havia como disfarçar que aquela era uma casa muito antiga. Sentiu frio e procurou pelo outro pé dos seus chinelos, sem sucesso. Sentou-se e começou a pentear os cabelos, quase enamorada de si mesma, deslizando a escova de madeira pelos cabelos brancos e espessos. 

“100 escovadas à noite. E 100 pela manhã. É a minha fórmula secreta”.  

Foi até a pia e molhou os olhos, as bochechas, enxugando-se com uma pequenina toalha. Polia-se com o cuidado de quem limpa porcelana fina. Estendeu a mão e agarrou o frasco de perfume. Uma mistura de cheiros adocicados e cítricos, como laranja, limão e açúcar. Borrifou o pescoço e as mãos. Espalhou cuidadosamente por entre dedos, ombros e atrás das orelhas. 

“Hoje, no bonde, todos os homens só terão olhos para mim”.

Ela queria deixar o melhor para o final, quando chegava o momento de se olhar ao espelho. E tudo precisava estar perfeito. Toda a indústria, toda a ourivesaria, para então poder se encantar de si mesma por horas naquele banheiro cercado de espelhos cristalinos, que a embebedavam de felicidade. De costas e olhos fechados, armava a sua própria surpresa, como quem vai revelar algo sob uma cortina. Vagarosamente, virou seu corpo de frente para o espelho, abrindo os seus olhos sem pressa.

* * *

Sua filha não conseguia compreender aquela cena. Assustada, pensou em teatro grego, em dança contemporânea, em cinema mudo alemão. Olhou para a sua mãe, tão frágil e idosa, ensanguentada, suas mãos cobertas de cortes e estirada no chão como uma rainha deposta. Não sabia o que dizer. Instintivamente, projetou-se ao encontro do seu corpo, já frio e dormente. Tomou-a nos braços e imaginou que ela poderia ter sofrido um derrame ou um infarto. Os seus olhos eram duas pérolas transparentes e sem vida e seu rosto era uma imagem fantasmagórica. Nenhum músculo parecia responder. E ficou sentada no chão, com sua mãe no colo, cercada de estilhaços e fragmentos de espelhos por todos os cantos do banheiro. Um louco poderia jurar que ali havia chovido vidro. Sentiu sua mãe apertar seu pulso num último sopro de vida, tentando se aproximar de seu rosto, como se fosse lhe sussurrar algo.

“Jogue todos os espelhos fora, Angela. Suas mentiras são perigosas demais”.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

DE VOLTA AO CEMITÉRIO DOS LIVROS ESQUECIDOS

David Martín é um escritor que luta por reconhecimento. Doente e desenganado, ele é abordado por um homem misterioso, com um broche de anjo na lapela, que encomenda ao escritor uma obra épica. Em troca, oferece um mundo de possibilidades financeiras, redenção e cura. A partir daí, desenrola-se uma trama misteriosa pelas ruas da Barcelona do começo do século XX, onde as sombras de um passado não muito distante parecem se esconder em todos os cantos e respirar, como se estivessem vivas. Para quem gostou de "A Sombra do Vento", este novo romance de Carlos Ruiz Zafón, "O jogo do anjo", é obrigatório. É uma pena, porém, que o livro não consiga encantar tanto quanto o primeiro, mas ainda assim transpira o estilo apaixonante de Zafón e permite retornar a lugares e pessoas inesquecíveis, como a livraria de Sempere e Filho e o Cemitério dos Livros Esquecidos. É uma viagem graciosa ao futuro de uma história que não poderia ter acabado em "A Sombra do Vento". Ou seria uma visão do começo de tudo? "O jogo do anjo" oferece um passeio adorável, repleto de mistérios, segredos e perigos, com um desejo incansável de surpreender e desleixo - intencional - em não responder questionamentos semeados ao longo de suas páginas. É ainda mais onírico e etéreo, recheado de momentos em que realidade, sonho e pesadelo se entrecruzam. Imperdível.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

ILUSTRANDO

"Autorretrato" - Lucian Freud

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

OS AMANTES

Os dois se encontravam pelo menos três vezes por semana. Sempre no mesmo horário, no mesmo lugar. Embarcavam, com a diferença de uma estação, no mesmo trem que os levava ao centro. Ele subia primeiro; ela minutos depois. Olhavam-se, brevemente, enquanto ela se aproximava da barra onde ele se apoiava todas as manhãs. Sem trocar uma única palavra, ela então repetia o que fazia todos os dias: ajeitava a bolsa firmemente sob o braço e segurava o mesmo apoio, onde as mãos de ambos flertavam casualmente com o toque. Algumas vezes, dedos mais atrevidos cumprimentavam uns aos outros enquanto ele e ela olhavam em direções opostas do vagão. Às vezes, ele lia o jornal enquanto ela mexia no celular. E suas mãos, como seres independentes, continuavam a aproximação contida.

Com o passar do tempo, acabaram encontrando naquele ritual o momento mais aguardado do dia. Os dois eram casados, tinham filhos e viviam vidas confortáveis nas quais "tudo está encaminhado". E eram felizes em seus casamentos. Mas tinham juntos, ali, na cumplicidade daquele vagão anônimo, um país sem governo onde podiam se refugiar. E reinar. Ela gostava de ver a repetição de suas gravatas, adivinhando um padrão para as suas escolhas. Azul clara, azul escura, bordeaux. Ele imaginava, a cada dia, se aquele poderia ser o aniversário dela. Sempre anônimos, sempre olhando em direções opostas, sempre mudos. Apenas mãos se tocando no balanço do trem sobre os trilhos.

E assim seguiam, por 23 minutos, até ela saltar primeiro e ele seguir túnel a dentro. Sem palavras nem despedidas, nunca trocavam olhares e raramente permitiam roçar um no outro. Ficavam apenas ali, segurando a mesma barra de apoio, para o entretenimento de dedos ora tímidos, ora desinibidos. Havia algo de erótico e proibido naqueles encontros propositais de mãos e dedos, escondidos sob o barulho e o anonimato. Os dois sentiam o coração palpitar a cada novo sacolejo do trem, quando mãos esbarravam um pouco mais, e palmas se sobrepunham numa deliciosa dança de acasos que os faziam sentir borboletas na barriga. Eram amantes.

Dias, semanas, meses. E os dois repetiam aquela dança invisível e sem importância para o resto do vagão apenas preocupado em chegar a algum lugar. Eles não. Gostavam do trajeto. Ele acompanhava o cumprimento do cabelo dela, curto no verão, longo no inverno, e a alternância do vermelho ao castanho escuro. Ela notava que ele tinha mais cabelos brancos desde a primeira vez que o viu e que costumava ganhar mais peso nos últimos meses do ano.

Armações de óculos, pastas e sapatos novos. Era como mantinham registro um do outro. Completamente anônimos e estranhos, contentavam-se com aqueles encontros efêmeros em que enroscavam os dedos, ora como algemas folgadas, ora como instrumentos de carinho. Nunca se olhavam, nunca se falavam. Até que ela desembarcava e ele seguia seu destino. Era sempre assim. Dia após dia.

Quando um ano se passou, ele decidiu que faria algo inesperado. Embarcou. Segurou o apoio e aguardou. Como já previa, ela entrou, olhou-o por um canto de olho e segurou o apoio a milímetros de sua mão. Seguiram juntos, sentindo a mistura do calor da mão dele ao frio da mão dela, recém saída da rua. O trem parou, portas se abriram e ela se preparou para sair.

Foi então que ele roubou sua mão e seu olhar inequivocadamente. Não a deixou sair. E ali ficaram, de mãos entrelaçadas, observando-se frente a frente, pela primeira vez, sob o som de seus corações saltitantes. Ele descobriu mais cantos e contornos do corpo dela. Ela desenhou novos traços em seu rosto, novas sombras sob seus olhos. Ficaram ali, pela eternidade de alguns segundos, adivinhando-se.

Mas, simplesmente, não sabiam o que dizer um ao outro.

Ela desembarcou e se perdeu sob a luz que cobria a escadaria que dava acesso à rua. Ele se sentou, enquanto dobrava o jornal calmamente guardando-o em sua pasta. Notou que ela havia deixado cair um lenço lilás, que ele delicadamente retirou do chão e guardou em seu bolso. Não sei antes perceber que havia perfume em sua mão.

Os monitores de TV coloriam o desembarque com manchetes do dia. Aparentemente, choveria ao final da tarde, o governo não sabia o que fazer a respeito do surto de gripe e nunca as taxas de financiamento de automóveis estiveram tão atraentes.

Nunca mais se encontrariam.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

PARA VER E OUVIR: "CLAIR DE LUNE"


David Oistrakh toca lindamente ao violino "Clair de lune", de Debussy, com Frida Bauer ao piano. Paris, 1962. É para se sonhar acordado.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

ILUSTRANDO

"Mao" - Andy Warhol

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O HOMEM QUE DESAPRENDEU A DORMIR

O que havia começado como mera insônia, destas que é até possível fazer piada a respeito, acabou se tornando um pesadelo real. Havia um mês, ele vinha dormindo cada vez pior, cada vez menos. Primeiro, um punhado de noites inquietas. Em seguida, seis horas de sono de má qualidade. Dias depois, cinco, quatro horas. Até, então, não pregar mais os olhos. Não conseguia. Ele havia desaprendido a dormir.

Ele tentava disfarçar o desespero de não conseguir dormir, enganando-se com algumas artimanhas pobres. Fingia bocejos casuais, vendava os olhos com uma máscara de feltro e dizia ocasionalmente, a si mesmo, do sono que sentia. Como se isso servisse para alguma coisa. E como se alguém o estivesse ouvindo.

Mas ele sabia que já não conseguia dormir e a visão do ponteiro do relógio encostando na meia-noite começava a lhe causar palpitação. Meia noite. Uma. Duas. Três. E lá estava ele, sentado no parapeito da janela, observando a cidade acordar para mais um dia. Seu café, frio desde as quatro e meia, era um adorno em sua mão. Os cigarros já faziam pilha no cinzeiro. Sempre que olhava os restos, entre bitucas e cigarros praticamente intactos, não conseguia evitar lembrar de uma fogueira dormente.

Artista plástico, trabalhava em casa, o que naquele momento era uma bênção. Porque podia se permitir não se barbear, pentear o cabelo ou mesmo trocar de roupa. Vivia só, num estúdio razoavelmente espaçoso e consumido num vendaval de roupas, livros, material de trabalho e louça sem lavar que, duas vezes por semana, era organizado por sua faxineira. Lourdes, uma guatemalteca de personalidade forte e voz doce, e a sua principal referência de convivência social. De alguma forma, ela lembrava-o de sua mãe.

"Um dia o senhor vai acabar sumindo, se afogando, nesta bagunça!", Lourdes gritava do quarto, enquanto desbravava a selva deixada por ele. De sua poltrona, na sala, ele se resumia em consentir com a cabeça enquanto pensava, "até que não seria uma má ideia". Duas vezes por semana. Era um ritual. Além de limpar o apartamento, Lourdes deixava uma tigela cheia de buñuelos com queijo, uma das poucas comidas que ele ainda parecia sentir desejo.

Estava cansado de si mesmo, como se desejasse se despir de si e vestir algo novo. E se angustiava terrivelmente com a ideia de que sua vida poderia estar escorrendo por entre os seus dedos. Sentia como se vivesse num grande mapa de projetos não concluídos, como se todos no mundo estivessem numa corrida e ele fosse o último colocado, sem chance de reposicionamento. Ainda era jovem, mesmo que quase sempre se sentisse como um destes aposentados adoráveis que passam o dia contemplando a corrida dos outros. Ele só não se sentia adorável.

Não é que estivesse deprimido. Não se sentia assim. Verdadeiramente. Era como se houvesse um vazio. Um grande vazio que ele parecia contemplar, todo o dia. E que, de alguma forma, também o contemplava de volta. O fato é que ele não dormia mais. Esse era o problema. Decidiu se consultar com um médico que, após alguns exames, elogiou sua condição física apenas observando uma leve anemia. Deveria tomar mais sol, caminhar se possível, e ingerir mais frutas e verduras. Não pretendia fazer nada disso, obviamente, e decidiu voltar para o apartamento.

No caminho, parou por alguns instantes diante da vitrine de uma loja de discos de vinil. A preferida da sua ex-namorada. Quase todos os finais de semana eles fuçavam as prateleiras e gavetas em busca de alguma raridade e geralmente sem sucesso. Quando ela foi embora, deixou todos os discos e uma frase que ele nunca conseguiu apagar da cabeça. Era uma lembrança que latejava.

Suspirou, resignou-se, e seguiu em frente. Quando estava próximo de virar a esquina em direção ao seu apartamento, porém, sentiu um impulso repentino de mudança de trajetória. Virou-se, como quem se lembra de algo, como quem ouve alguém gritar o seu nome, e desceu correndo as escadarias do metrô.

Lá embaixo, os sons do mundo eram gradualmente substituídos por outros, mais abafados. Sons acinzentados de quase conversas, quase pensamentos, e música vindo de algum canto. Azulejos grafitados, pôsteres rasgados e latas de lixo urgindo por assistência davam tons de caos ao não-lugar. Sentou-se sozinho, num banco de frente para plataforma. Os trens rugiam sobre os trilhos enquanto ele observava as pessoas que subiam e desciam dos vagões. Quando se dissiparam, do outro lado da plataforma seus olhos encontraram um senhor de idade bem avançada. Sentado num banco praticamente em frente ao seu, o velho parecia fazer exatamente a mesma coisa que ele. Observar as idas e vindas daquela estação.

Ele então se levantou, olhou rapidamente se algum trem se aproximava, e atravessou os trilhos com desleixo corajoso. Subiu, aproximou-se e notou que o senhor comia buñuelos com queijo enquanto contemplava, com tristes olhos de vidro, os passantes anônimos e se sentou ao lado do velho. Os dois se olharam por alguns segundos como quem se olha no espelho.

Eis que o senhor, iluminado como se tivesse resolvido uma charada, olhou para ele com o sorriso mais doce do mundo. E tocou sua mão, como quem toca uma miragem. Era como se estivessem sonhando. Um sonho de nostalgia, um sonho de premonição.

Foi quando ele entendeu tudo.

"O senhor se incomodaria se eu encostasse minha cabeça em seu ombro por alguns instantes?"

E, como uma criança, adormeceu profundamente em meio ao caos da estação.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A ELOQUÊNCIA DAS PEDRAS

"A Partida" (Okuribito) é um lindo filme japonês. E como tudo que é japonês, silencioso, gracioso e belo beirando o etéreo. O filme narra a história de Daigo Kobayashi, um jovem violoncelista que vive com sua mulher em Tóquio. Ele não vê o seu pai desde os seis anos de idade, quando este abandonou sua mãe. Essa mágoa faz com que ele sequer consiga lembrar do rosto de seu pai. A única coisa que restou foi uma memória em que os dois caminhavam na praia e o seu pai o presenteou com uma pedra. Quando, repentinamente, sua orquestra é desfeita, Daigo se vê obrigado a retornar à sua cidade natal, onde viverá na casa deixada por sua mãe. Num acaso do destino e precisando de trabalho, ele arruma um emprego numa agência funerária, onde acaba se tornando um profissional habilidoso. A partir deste momento se desenrola a delicada costura de imagens e sensações provocadas pela história narrada na tela.

Essencialmente, "A Partida" mostra a relação da cultura japonesa com a morte e a passagem. Vemos, ao longo de praticamente todo o filme, a explicação de belíssimos rituais dedicados ao último adeus, onde o silêncio, a calma e a dignidade ensinam as últimas palavras a serem ditas aqueles que se vão. O filme, apesar de seu potencial dramático, carrega no bolso uma alma ensolarada que ajuda a rir, mesmo quando os nós se fazem nas gargantas. Trata-se de uma pequena caixa de surpresas da qual apenas coisas belas e puras podem ser obtidas. Um filme que merece ser visto senão como enriquecimento cultural, como canja de galinha para a alma. Como uma melodia, "A Partida" toca o coração com notas altas e baixas, alegres e tristes e chega à alma com precisão. É um filme sobre acasos. E o acaso, que transforma Daigo Kobayashi num "agente de despedidas", será responsável, justamente, em ensiná-lo que, muitas vezes, o fim é também o começo de tudo.