sexta-feira, 5 de março de 2010

VOZES


Celeste já não compreendia tão bem como antes o que as vozes queriam dizer. Com o tempo, as mensagens foram ficando cada vez mais confusas, como código cifrado, como charadas sem sentido. Só uma coisa permanecia intacta, o fato de que se sentia compelida a obedecê-las. “As vozes são a melhor coisa que nos aconteceu, Beatriz, desde que ele foi embora”.

* * *

O marido a havia abandonado com sua filha ainda pequena. Saiu de casa como um foragido, numa madrugada, sem deixar pistas. Nem bilhete, nem dinheiro, nada. Era como se elas simplesmente não existissem. Em um mês as duas tiveram que ir morar numa pensão, enquanto ela tentava ganhar a vida como garçonete. Quando sentiram fome pela primeira vez as vozes começaram a se manifestar. E a tranqüilizaram, quando ela mais precisou de esperança. “As vozes estão falando comigo, Beatriz. E elas estão dizendo que não devemos ter medo”.

A única coisa que seu ex-marido havia deixado, ou esquecido, era um revólver calibre 38, que ficava escondido numa caixa de cereal, dentro do armário da cozinha. Celeste sempre verificava se a arma ainda estava lá. “As vozes mandam eu checar todos os dias, Beatriz, e ela está sempre lá. Foi a única coisa que seu pai nos deixou”.

Durante o dia, a dona da pensão olhava Beatriz, pelo menos por algumas horas, enquanto Celeste trabalhava. Tarde da noite, voltava exausta para casa e encontrava a pequena Beatriz adormecida. Ás vezes ela chorava, de medo, de fome, de solidão. O desespero sobre o desamparo a fazia ter vontade de gritar. Levava a filha para sua cama onde tentava niná-la, cantarolando algumas poucas músicas que conhecia. Beatriz dormia como um anjo ao seu lado enquanto ela acendia mais um cigarro com suas mãos trêmulas de garçonete desastrada. “As vozes não me falam mais claramente, Beatriz. Gostaria que elas me ajudassem, porque já não sei mais o que fazer”.

* * *

Amanheceu um domingo completamente desorientada. Café escorrendo na pia, leite espalhado na mesa, fatias queimadas de pão. Arrastava-se pelo minúsculo apartamento, fechando as cortinas, letárgica. Ligou a velha televisão e colocou Beatriz sentada, desenhando no chão. Sentou-se à mesa e acendeu mais um cigarro. Os cabelos estavam embaraçados e seus olhos eram negros e profundos como se não dormisse há um século. Vestia uma camisola encardida e suas mãos tremiam enquanto tentava trabalhar. Havia recebido uma revelação. “As vozes me mandaram entalhar duas letras nelas, Beatriz. Para que elas se tornem mágicas. Não precisamos mais temer, assim as vozes disseram”.

Beatriz brincava no chão com um velho urso de pelúcia e observava a televisão ligada num volume ensurdecedor. Sua mãe estava sentada à mesa, fazendo movimentos repetitivos com as mãos, como se lixasse alguma coisa. E estava serena, pela primeira vez na vida.

“Hoje voltei a entendê-las, Beatriz. Ficou claro como a luz do sol. As vozes me disseram para sentar aqui e separar essas duas. Vê como elas são brilhantes, Beatriz? Nesta vou raspar um B de borboleta. Naquela um C de coração”. 

Um comentário:

LILIAN disse...

MUITO FORTE..DESAMPARO..SOLIDÃO.
lOUCURA.DARK SHORT STORIE,A LA S.KING

E ALLAN POE.

PROFUNDEZAS DAS ALMAS PERDIDAS...

MUITO BOM.