sábado, 17 de abril de 2010

LAPSO


Uma bela mulher, de longos cabelos ruivos o acordou com um beijo de bom dia: “levante, preguiçoso! As crianças já estão atrasadas!”. Levantou-se, letárgico. Um pouco de água no rosto, um banho breve, um punhado de roupas escolhidas e dobradas sobre uma cadeira de couro. Vestiu-se. A escada que descia para a sala, coberta com carpete marrom, felpudo, rangia sob os dedos dos seus pés. Meia dúzia quadros na parede, algumas fotografias, um vaso inexpressivo com flores quase murchas. Na cozinha, movimento apressado de pessoas.

“Pai! Anda! Eu não posso me atrasar para a feira de ciências!”, gritou o menino, da porta da casa; as bochechas rosadas e o uniforme pouco arrumado. “Pai, toma seu café com calma, não esquenta”, intercedeu a jovem à mesa, enquanto arrumava os livros para as aulas da faculdade. "Lógica", "Teoria do Caos".

Ele olhava tudo com olhos de vidro, de cansaço e surpresa, como uma máquina obsoleta, incapaz de processar um dilúvio de novos comandos e informações. Mal conseguia levar a xícara de café à boca, enquanto observava aquela cena familiar tão rotineira. A mãe ajudava o filho com uma maquete. O garoto segurava a chave do carro. A garota lia enquanto bebia um suco que parecia ser de maçã, alheia ao barulho da cozinha.

Um cachorro veio à sua perna, lambeu seus pés e ficou aguardando ser afagado. Ele olhou para o cão como quem olha alguma figura mitológica. “Meu bem, você não está atrasado para o trabalho?”, interrompeu a mulher. “Pai, você está bem?”, a jovem completou o inquérito. Ele os olhava inquieto, sem saber o que lhes responder. Pensou em histórias de fantasmas e realismo fantástico. Se é que conseguia, realmente, pensar em algo.

A mulher falava dos preços do mercado. Aparentemente, o suco de laranja nunca esteve tão caro. Ouvindo uma buzina alta, a jovem se levantou e, num salto, despediu-se, correndo para entrar no carro do namorado. Um carro vermelho, com um rapaz bonito, de óculos escuros, esperando, sorridente. Beijaram-se de forma pouco comportada.

O menino correu para depositar a maquete no banco de trás do carro estacionado fora da garagem. Já sentado no banco do passageiro, gritava como uma sirene de bombeiros. “Pai! Pai! Pai! Pai! Pai!”.

“Ei, o que você tem hoje?”, a ruiva interrompeu seus pensamentos, ajeitando-lhe a gravata e fechando a sua pasta. Uma bela pasta de couro de porco com duas iniciais: A. H. “Você esqueceu de pagar o cartão de crédito? Eles ligaram ontem, alegando que estamos atrasados”. Olhou-a como quem vê os créditos de um filme subirem. Através dela. Um perfume esquisito. Um pouco mais de maquiagem do que deveria àquela hora do dia.

A mulher o conduziu para a porta, trancando-a atrás dele. O sol brilhava intensamente, mas a grama estava molhada, como se tivesse chovido à noite. Na casa ao lado, um homem gordo e de roupão vinha em busca do jornal. Acenou para eles, com cortesia. Do outro lado da rua, uma senhora acenou da janela. Sorriu para os dois. Uma jovem deu bom dia, enquanto passava de bicicleta. No final da rua, cruzou uma viatura da polícia em ronda. Aquele silvo estranho. Azul. Vermelho. Azul. Vermelho.

“Você ainda não me disse o que achou das novas cores para as cortinas. Ficamos com lilás ou bege claro?”, perguntou a mulher enquanto caminhava para um outro carro, dentro da garagem. Ele não respondeu. Apenas a observou, emudecido demais. Ela deu de ombros. Ele estava estranho. Insônia, talvez. 

Jogou-lhe um beijo de longe pouco antes de se sentar à direção. Por alguns instantes,  olhou a mulher entrar no carro e retocar a maquiagem no retrovisor. Então, após breve meditação, abriu a porta do seu carro, sentou-se e apoiou uma das mãos ao volante.

Antes de dar a partida no carro, porém, questionou-se com certa preocupação: “quem diabos, afinal, são estas pessoas?”

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