quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O ESPELHO

Acordava, todos os dias, num ritual preguiçoso e de atividades coordenadas. A primeira visita ao banheiro para resolver alguns compromissos fisiológicos. Olhos semi-serrados, cabelos em múltiplas direções. Olhava-se no espelho por alguns instantes, molhava o rosto, avaliava o surgimento de sinais, rugas ou espinhas inesperadas. Escovava os dentes, sem pressa, sentindo o posicionamento de cada um deles dentro da boca.

Barbeava-se e então seguia para o começo de mais uma manhã com ações automáticas que envolviam fazer café, ignorar as notícias, exercitar-se e então rumar para o primeiro, e rápido, banho do dia. Observava o seu corpo com algum rigor, culpando-se por eventuais exageiros gastronômicos na noite anterior. Adorava comer comidas boas e beber vinhos bons. Era seu pecado preferido. Não que fosse dado a pecados. Não era.

Saía do banho, a água fria escorrendo das pernas para os azulejos no chão. Enxugava-se com delicadeza, massageando cabeça, braços, costas. Gostava deste cuidado, sentia-se abraçado. Voltava ao espelho para pentear os cabelos, hidratar a pele tão ressecada de janeiro e se perfumar para mais um dia de trabalho.

Vestia-se sem muita exigência. Gostava de elaborar algumas combinações não muito criativas. Não tinha muita paciência. Desde que as cores não berrassem entre si, estava tudo bem. Calça, meias, cinto, camisa, botões. E retornava ao espelho para amarrar a gravata em volta do pescoço. Estava vencido 1/3 do dia. Era hora de sair.

Quando voltava para casa, com o sol se derramando vermelho na janela da sala, jogava a mochila de maneira desplicente sobre o sofá. Chutava sapatos e se despia como se fosse o super-homem saindo de uma cabine telefônica. Sentia calor quando voltava. Alguns bons blocos caminhando. Ajudava a manter o peso.

Olhava-se por alguns instantes ao espelho, observando o desgaste do dia. E tomava um último banho. Este, diferente do primeiro, sem pressa. Gostava da sensação da água morna no corpo, como se estivesse lavando o peso de um dia inteiro de trabalho árduo. Árduo, não. Não era, de fato. Mas não menos cansativo. Secava-se, penteava os cabelos e vestia um confortável pijama de algodão para, então, elaborar uma ceia modesta que, em dias comportados, não passava de uma sopa, torradas e chá preto.

Realizava algumas atividades banais e então se preparava para encerrar a terceira parte do seu dia. Deitar-se e dormir. Molhava o rosto para então secá-lo numa massagem preguiçosa. Olhava-se uma última vez, apagava a luz e deitava sob um emaranhado de cobertas que o mantinham aquecido durante a noite.

Ele era um homem só. Muito só.

E nunca, nem uma única vez, percebeu a estranha mulher que o observava, todos os dias, dentro do espelho; não percebia a mulher nem os seus olhos amarelos. Aqueles olhos de gato. Ohos de bruxa.

No dia seguinte, nada de rituais e rotinas. Apenas silêncio, um emaranhado de lençois vazios sobre a cama, e os ruídos da cidade que despertava para mais uma manhã.

O apartamento estava vago novamente. Era iluminado, espaçoso e tinha um aluguel bem abaixo do mercado.

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