sexta-feira, 11 de março de 2011

O INCIDENTE

Aquela família jamais seria a mesma. Após o incidente, tudo havia ganhado outras cores e profundidades, como se pairasse no ar uma suspeita, um perigo, um segredo. Olhavam-se, em silêncio, durante todas as refeições. Escondendo-se, uns dos outros, como se vestissem máscaras de um carnaval em Veneza. O incidente havia mudado tudo. Para sempre.

As conversas eram pautadas por amenidades. Nada que importasse. Conversas anestésicas, sem grandes propósitos. Risos postiços, toques forçados sem nenhuma intenção real de carinho. Desde o incidente, eles haviam se tornado estranhos. Quase inimigos. Não sabiam mais como lidar com a convivência diária. Haviam se tornado estrangeiros naquela modesta casa onde cinco pessoas pareciam ocupar o espaço de um exército.

O pai saía, todas as manhãs para trabalhar. Saía e voltava com o mesmo punhado de palavras necessárias. A mãe ficava, quase todo o dia, na cozinha e orquestrando as atividades da máquina doméstica. Comida, limpeza, roupas. Ações automáticas e precisas, similares ao do seu marido, que do outro lado da cidade soldava componentes de eletrodomésticos. Mãos e pernas que pensavam pela cabeça. Olhos para guiar no percurso, ausência quase completa de pensamentos. Assim era depois do incidente. Era melhor não pensar em nada.

Os dois filhos mais velhos ficavam quase todo o dia fora. Um para cumprir uma exaustiva agenda de estudos e trabalho. Outro para uma agenda mais flexível, geralmente sem nenhum propósito construtivo. Mas nem por isso deixava de chegar em casa no cair da madrugada. Na solitária companhia da mãe ficava a filha mais nova, pré-adolescente, que estudava pela manhã e ajudava a mãe durante os afazeres da tarde. Silenciosa, como se muda, navegava os poucos cômodos como um fantasma. Aquela menina de olhos trágicos e vestidos puídos que ficavam cada vez mais curtos diante dos olhos de todos.

O incidente havia mudado tudo. Havia destruído aquela família. Eles não conseguiam mais olhar nos olhos uns dos outros. Não sabiam o que dizer, o que perguntar. Não riam. Não havia música. Quando muito o silêncio embalado pelas notícias sem importância na televisão. Eles eram estátuas de cera vivas, ocupando espaços em conjunto, convivendo com dificuldade. Habitantes de um labirinto. Prisioneiros sem muros.

Pela manhã, logo cedo, começava o pior de todos os rituais familiares. Tomar café, naquela mesa de toalha florida onde os braços e cotovelos quase podiam se tocar. Mãos que trocavam desastradamente facas e manteiga com grande inibição. Olhares ressabiados, pernas inquietas sob a mesa. Os filhos exalando um cheiro misturado de sabão e desodorante. Aquele cheiro de quem começa uma nova jornada diária. A mãe ainda de camisola, os cabelos amarrados sem rigor atrás da cabeça. O pai transpirando álcool em excesso da noite anterior. Todos os dias. Depois do incidente, tomar café juntos se transformou numa sessão de tortura para aquela família.

Como um batalhão dispersado, cada um praticamente saltava da cadeira para cumprir as obrigações necessárias ou mesmo inúteis. E o silêncio tomava conta, mais uma vez, da casa. A mãe recolhia os pratos, como uma cega, tateando os utensílhos sobre a mesa. O pai se arrastava para a porta, como se carregasse uma tonelada sobre suas costas cansadas de trabalhador braçal. Olhava para a mulher, de costas, na cozinha, lavando pratos. Um barulho excessivo de louça na pia, como se para abafar algo. Como se ela gritasse e aquela louça balançando violentamente pudesse fazer algo para abafar o barulho que vinha de sua mente. Ameaçava ir ao seu encontro e tocar o seu ombro. Mas desistia todas as vezes.

O sol invadindo lentamente a sala. Móveis baratos, flores de plástico. Tudo coberto por uma iluminação pobre que, ao final do dia, produzia um desagradável cheiro de coisa mofada.

O incidente havia mudado tudo, não havia como negar.

Aquela era uma família de pessoas infelizes. Reféns de um segredo. Eles que, em companhia de seus travesseiros, pediam secretamente, todas as noites, para não acordar no dia seguinte.

Aquelas pobres seis pessoas.

Um comentário:

ione gonzalez disse...

Estilhaços de almas tomadas por um REAL,''um indizivel''um inomeavel.

Adorei o texto,sua forma cortante

e comovi-me as lagrimas com os olhos tragicos e a solidão desta menina.