quarta-feira, 29 de junho de 2011

O NÚMERO

Ela sempre tinha muitos lugares para ir, contatos a fazer, coisas a resolver. Equilibrava, como uma malabarista, uma agenda diária de banalidades e assuntos de vida ou morte. Era uma mulher ocupada demais. Ocupada demais para o seu casamento, seus filhos, para si mesma.

Numa terça-feira, seu marido ligou três vezes no seu celular. Precisava dizer algo que ela nunca tinha tempo suficiente para ouvir. "À noite nós falamos sobre isso", respondia no automático sem nem processar as palavras do outro lado da linha. 

Na quarta ligação, desligou sem atender. Na quinta, desligou o aparelho.

À noite, em casa, não encontrou seu marido, que havia sofrido um acidente de trânsito e morrido no caminho para o hospital. O choque da notícia a obrigou a visualizar um slide-show mental em sua mente; imagens rápidas, frenéticas; pulos de tempo e espaço que misturavam sorrisos inocentes, roupas de festa, areia de praia, cheiro de tinta e malas de viagem. Um resumo da vida. Daquela vida, já tão estrangeira, que nem parecia tão dela.

Conversou com agentes de trânsito, com médicos, agentes funerários e filhos. Resolveu pendências burocráticas, financeiras. Enterrou seu marido numa manhã ensolarada, com cara de feriado, em que dezenas de pessoas de rostos completamente desconhecidos suspiravam diante do caixão que descia lentamente aqueles longos sete palmos.

Recebeu pêsames, abraços e palavras de conforto sinceras e fabricadas. Despediu-se de todos e deixou filhos com avós porque "precisava ficar sozinha por algum tempo, para se recuperar". Mas isso não a impediu de resolver assuntos de trabalho na manhã seguinte. Sofreu, sim, aquela perda. Mas seguiu em frente supreendendo a si mesma. Não se julgava tão inabalável.

E se passaram dias, semanas, meses. Um tempo corrido, de novos malabarismos e afazeres inadiáveis.

Numa noite qualquer, porém, verificando mensagens e ligações antigas no seu celular, parou quase imobilizada diante de um número. Aquelas ligações insistentes. Aquele número na agenda do seu celular. Lá estava ele, aquele número para o qual ela nunca mais ligaria, nem receberia ligações. Aquele vestígio eletrônico que carregou sobre ela uma presença e uma ausência do tamanho do mundo.

Deu-se conta de que precisava apagá-lo. E deletou o número, num pranto silencioso e trêmulo. Quase incrédulo, um quase espanto, um quase transe. Como se uma sombra a estivesse engolindo. Um abismo sem fundo.

Foi quando, para o seu inexplicável desespero, ela percebeu que o seu marido estava morto.

Um comentário:

Anônimo disse...

Costuma ser assim...ouvi dizer de uma moça cujo pai,um cientista famoso,faleceu.Durante meses ela quase nada sentiu.Então ela vendeu uma casa que ele deixou para ela de herança,surpreendeu-se por valer tanto.Com o dinheiro foi a Veneza,realizar um antigo sonho.Lá ntrou em depressão profunda,no hotel de luxo passou os dias a chorar ,um pranto inconsolavel,de culpa,pois gastava a herança paterna...seu pai estava finalmente
morto.Lindo seu texto,como sempre me comoveu muito.Obrigada.