sábado, 19 de novembro de 2011

ARVEL E A GUERRA

Todos os homens na vila guardavam uma lança de combate em casa, que rezavam todos os dias para que nunca precisassem usar. Eram tempos de paz, inegavelmente, ainda que o rei insistisse que todos os homens saudáveis estivessem sempre prontos para tomar armas. A guerra podia chegar. Mas ela nunca chegava.

Alguns creditavam a paz aos feitiços dos druidas que dançavam, meio loucos, no topo do morro, com seus cabelos espetados e roupas esfarrapadas. Outros às mulheres que cantarolavam aos deuses que livrassem seus maridos da guerra enquanto cuidavam das costuras ou do peixe defumado. Alguns outros à inexistência de inimigos aparentes ou suficientemente fortes. Não havia perigo, de fato, e os anos eram uma sucessão de rituais felizes que envolviam as colheitas, o crescimento das crianças e as festividades. 

Mas não para Arvel. Galês, nunca havia se sentido plenamente em casa ali. Vivia, cuidava da sua lavoura, do gado, dos filhos que nem sabia se eram seus. Mas era tão infeliz que já nem sabia ao certo como era a sentir-se de outra forma. Tinha lembranças, claro, mas eram pedaços etéreos e desconexos que envolviam cheiro de carne de porco, joelhos ralados, arcos de freixo pequeninos, maçãs colhidas nas árvores e os cabelos ruivos desgrenhados de sua mãe, Erce.

Arvel tinha seis filhos - sem contar três que não haviam sobrevivido mais que um punhado de semanas - uma casa de barro batido, alguns bois e uma pequena plantação que abastecia sua casa com grãos suficientes para o inverno. Nem muito, nem pouco, o suficiente. Havia lenha na lareira e roupas de lã que, ainda que velhas, puídas e mal costuradas, aqueciam seu corpo magricela nas noites mais impiedosas. Ele era casado com a filha do ancião da vila - algo que dava certo status naquele círculo social rudimentar.

Mas Arvel não era feliz. Dos seus filhos, não tinha certeza se pelo menos um era dele. Sua mulher infernizava cada hora de seu dia e não havia nada, naquele amontoado de cabanas úmidas, que ele pudesse chamar de lar. Arvel já nem lembrava que raios, que ventos tinham levado-o para aquele lugar. Coisas dos deuses que deveriam ter algum propósito para a sua existência. Faltavam tantos séculos até que os homens pudessem descobrir a depressão. Pobre Arvel. Não havia caprichos como esses em seu tempo. Era uma época de embrutecimentos, poucos dentes e vidas curtas. 

Não que sua vida fosse ruim. Na verdade não era. Arvel só era infeliz. Verdadeiramente infeliz.

Mas um dia, afinal, a guerra chegou. E enquanto as mulheres choravam lástimas desesperadas sobre os ombros de seus maridos armados, Arvel era o primeiro da fila, em marcha orgulhosa, vestindo roupa completa de couro e ferro, capa, elmo e escudo. Um sorriso largo o denunciava a quilômetros de distância.

Arvel não estava indo para a guerra. Arvel estava indo embora.

Um comentário:

Everlasting disse...

maravilhoso...texto perfeito.