segunda-feira, 26 de março de 2012

O TERCEIRO GRUPO

Vovô Antônio, carinhosamente conhecido como "Vovô Epitáfio", foi um dos homens mais engraçados, charmosos e carinhosos que tive o prazer de conhecer e conviver até hoje. Ele era o maquinista da nossa família, colocando as nossas vidas no trilho, nos resgatando dos nossos erros e nos aconselhando de maneira sábia, altiva, engraçada.

Ele tinha uma aura inegável de personagem de livro, meio inesquecível, meio inventado, meio mágico; e exigia muita paciência da minha vó, com seu humor nem sempre compreensível e uma energia que cansava até mesmo os netos pequenos. "Eu sou um homem vulgar, Matilda, mas minhas intenções são sempre as melhores", ele respondia para as máscaras de fúria da minha vó.

Se ao menos ele soubesse como não havia absolutamente nada de vulgar ao seu respeito. Vovô Antônio era, na falta de uma palavra mais adequada, o meu herói.

Ele dançava com as moças da nossa família. Eram dele as primeiras danças, não importando quais fossem as ocasiões. Ele brincava com as crianças, debatia com os adultos e, quando sua saúde o permitia, aventurava-se nos esportes e jogos conosco, os adolescentes. Cozinhava pratos inexplicáveis, que pareciam saídos de livros de bruxos e fazia desenhos e caricaturas da gente, tão distorcidos que nem Picasso conseguiria um efeito similar. E ria de si mesmo e ria com a gente.

É a primeira imagem que me vem à cabeça quando penso nele. Rindo. Sempre rindo.

Mas um hábito, entre tantos que o marcavam, era o mais pitoresco. Vovô Antônio tinha pavor mortal da ideia de morrer sem se despedir de nós. Ou melhor, ele sentia pavor de morrer sem dizer as palavras certas, as palavras ideais. E isso fez com que ele fosse carinhosamente batizado de "Vovô Epitáfio".

Era comum, quase rotineiro, ouvirmos citações, poemas - às vezes em outros idiomas, nos originais - ou discursos inflamados, feitos de improviso. Ocasionalmente uma piada, um enigma, uma lição, uma fábula. Outras tantas vezes ele gostava de parar solene, diante de nós, e balbuciar um punhado de palavras arquitetadas, feito um arauto. Quem sabe não seriam justamente aquelas as suas palavras finais?

As despedidas, das mais importantes às mais corriqueiras, eram marcadas por estes eventos que, com o tempo, passamos a aguardar ansiosamente. Meu avô viajava todos os anos com a minha vó. No aeroporto, antes de entrar no salão de embarque, quem estivesse por ali ouviria uma despedida apaixonada, marcada por metáforas comoventes e ensinamentos sobre como deveríamos nos amar, nos respeitar, nos perdoar. Nos casamentos, as mais lindas reflexões sobre o amor eterno, com direito à canções medievais ou citações em italiano de Dante Alighieri. Formaturas, aniversários, enterros. Sobretudo estes. Numa saída de um restaurante, ao final de um almoço familiar no domingo, ou mesmo antes de dormir, não havia uma ocasião em que Vovô Epitáfio não roubasse alguns preciosos segundos da nossa atenção com uma apaixonada reflexão que deveríamos guardar como se fosse a última.

Às vezes, até mesmo antes de ir ao banheiro.

Ele era um contador de histórias nato. Desinibido e performático, vovô narrava passagens quase bíblicas da sua vida - todas prontamente corrigidas pela minha vó Matilda, não muito dada à ficção. Ele narrava as aventuras de guerra do nosso bisavô, apesar de sabermos que ele nunca estivera em guerra alguma. Fortunas conquistadas e perdidas da noite para o dia. Amores sequestrados nas janelas, seu sonho em ser piloto de avião, suas amizades com as estrelas do cinema americano. Sabíamos que eram todas deliciosas mentiras e ele mesmo gargalhava com as incongruências e inverossimilhanças que até as crianças notavam sem dificuldade.

Vovô Antônio ria, dobrava de rir, aquele sorriso contagiante, largo, de orelha à orelha. Ele era um ser iluminado, feliz, de outro planeta. Salvo pelo seu mórbido costume de dizer suas últimas palavras centenas de vezes ao longo do dia, ele era a presença mais querida em todos os nossos encontros. Uns riam, uns tantos se envergonhavam, um pequeno punhado chorava e se comovia realmente com aquelas palavras meditadas.

E eu sempre estive entre os do terceiro grupo. Porque eu sabia, eu sabia, que aquelas não eram palavras inventadas, banais. Vovô sentia aquilo. Ele não queria sumir. Não queria desaparecer. Não queria partir sem deixar vestígio, sem se eternizar por meio das suas despedidas. Ele queria deixar algo, para que nos lembrássemos dele. Aquela família gigante que ele tanto amava.

Ele acompanhou todos os passos da nossa vida. Da minha vida, ou pelo menos os mais importantes. Meu amigo, meu confidente. Ele esteve lá durante todos os nossos casamentos, separações, formaturas, nascimentos, mortes. Ele esteve presente, nosso bardo amado que acreditava nos nossos sonhos mais fúteis e não nos deixava aceitar que não éramos simplesmente os seres mais incríveis do planeta.

Como ele era. Melhor, como ele nunca soube que era.

Porque ainda lateja a cicatriz no meu coração, quando lembro dele, que partiu numa noite qualquer, dormindo, sozinho. Sem dizer adeus, seu maior medo enfim se concretizando. Um medo em vão de quem jamais seria esquecido e que, ainda hoje, sobrevive nas nossas memórias mais queridas.

Com apenas uma pequena diferença. Agora todos pertencemos ao terceiro grupo. 

quinta-feira, 22 de março de 2012

CAROLINA

Ele era um desses homens de meia-idade. Bonito, bem sucedido, solteiro, com tempo e dinheiro suficientes para se manter jovem e vencer o tempo de forma mais competente que muitos homens de sua idade. Não era necessariamente vaidoso; gostava de coisas boas, tinha gostos refinados que se estampavam nos relógios, sapatos, camisas e calças bem cortadas. Perfumes discretos, carros esportivos, o apartamento dos sonhos de qualquer homem sem compromisso. Apreciava bons vinhos, restaurantes caros, mulheres bonitas que preenchiam suas noites mais solitárias de forma descartável. Em poucas palavras, vivia uma vida perfeita, com sabor de champagne e charutos.

Mas havia algo. Um algo sem nome. Algo que... faltava. Durante inúmeras noites ele se pegava diante da grande janela da sala, observando as luzes da cidade gradualmente se apagando diante dos seus olhos. Aquelas janelas desaparecendo na noite. Pessoas indo dormir, enquanto ele não sabia o que fazer com seus pensamentos sem batismo. Olhava as ruas desertas, aqueles sons urbanos, abafados, que só são ouvidos nas madrugadas. Aquela mistura estranha de motor distante, gatos, cachorros e recém-nascidos. E aquela película de silêncio envolvendo tudo numa sinfonia que só os insones conhecem.

Era feliz. Muito. E realizado. Olhava-se no espelho, todas as manhãs. O corpo ainda rígido, os cabelos grisalhos bem cortados, a pele levemente bronzeada. O tempo havia sido generoso com ele. Ele, o charmoso príncipe sedutor, colecionador de centenas de mulheres sem nome nem sobrenome. Nunca havia se casado, não tinha filhos, nem irmãos, nem pais. Era só. Realmente só. Mas não sabia, exatamente, se isso era a fonte das suas angústias. Tergiversava com a sua analista, todas as semanas, quando ela ameaçava avançar pelas zonas desmilitarizadas do seu inconsciente. "Isso é uma bobagem, doutora".

Apreciava hobbies e passatempos caros, que compartilhava com um punhado de amigos que permitia entrarem em sua vida. Mas se intrigava com aquelas amizades. Não deveria ter nenhum amigo que conhecesse há mais de um ano. Era tudo sempre tão novo, tão recente, tão fresco. Como se os fatos não aderissem à sua história. Não permanecessem. Como um lindo álbum de fotografias, destes encadernados em couro de porco e letras douradas, mas sem foto alguma dentro. De fato, não havia nenhum porta-retrato em sua casa. Tinha fotos dos seus pais, de sua juventude, algumas namoradas e viagens, mas deixava tudo guardado numa caixa no armário que revirava, vez ou outra, num porre mais nostálgico e melancólico acompanhado de música clássica e umas lágrimas inocentes. Nada que durasse mais que um punhado de horas, porém. Na manhã seguinte, o sol nascia de novo, ele era um outro homem.

Apenas o vazio continuava.

No seu aniversário de 50 anos decidiu embarcar sozinho num cruzeiro. E não necessariamente por opção; não havia a quem convidar era a verdade que ele se esforçava em não enxergar. Deliciava-se com aquela celebração da sua vida, porém. Achava, pelo menos. Fazia-se acreditar, naquela sucessão de drinks exóticos à beira da piscina, observando as mulheres desfilando em trajes de banho e tomando sol de olhos fechados enquanto o barulho hipnótico do mar por todos os lados o fazia quase levitar. Adormecia.

Numa noite, percebeu que uma mulher o observava, de longe. Sozinha, numa mesa do outro lado do salão, ela o olhava insistentemente. Era jovem - jovem demais, pensava - mas isso não o impedia de se lisonjear. "Quantos anos teria? Talvez nem 20". Uma linda moça, de feições delicadas, pele branca, cabelos castanhos avermelhados curtos e desgrenhados, e aqueles olhos penetrantes que pareciam desnudá-lo na frente de todos. Ela o encarava com uma mistura de presa e caçadora em seu semblante sério. Mas o mais estranho de tudo é que ele a achava absurdamente familiar. Haveria estado com aquela mulher, antes?

Não, era impossível. Ele não gostava de fazer o tipo coroa jovial que seduz mocinhas. Achava isso patético. Gostava das mulheres que beiravam a sua idade. Simplesmente porque não tinha paciência para as banalidades das jovens. Atraía-se pela experiência. Pelas mulheres que comunicavam aquela seriedade que só a passagem dos anos ensinam aos olhos. Era dessas mulheres que ele gostava.

Mas era desconcertante. Até para ele. Aquela linda moça que o observava a todo o tempo. Sentia-se um alvo, onde estivesse. Não havia lugar naquele navio em que, após alguns minutos, ele não se visse observado pela jovem misteriosa que sempre o encarava de longe. Já não se sentia mais lisonjeado. Começou a sentir medo.

Até que chegou o dia de aportarem de volta. Aquele caos saboroso, em todos os cantos. Sentado no bar, ele via a linha azul cortando as janelas à sua frente. Então sentiu uma presença em suas costas. Antes mesmo de se virar ele sabia que era ela. Não chegou a abrir a boca. Ela já havia estendido a mão para ele e tomado as rédeas da situação. E, com um punhado de palavras quase sussurradas, disse sem cerimônia:

"Prazer. Eu sou sua filha".

O choque inicial rapidamente se converteu num caleidoscópio de lembranças confusas, distantes. Sim, ele conhecia aquela moça. Ela era igual a sua mãe. "Como ela está?", perguntou com curiosidade sincera. Como estaria aquela ex-namorada, distante, esquecida? Descobriu que ela havia morrido há anos e que um acaso permitiu que a menina o encontrasse. Uma carta, um endereço, uma fotografia. Ele era mais jovem, de fato, mas havia mudado muito pouco.

E então ele tomou conhecimento das dificuldades que calçaram os caminhos daquela moça até aquele dia. Aquela menina linda, hipnotizante feito uma ninfa, em que gradualmente ele via tanto de si, refletido ali, diante dos seus olhos incrédulos e de sua boca que, apenas após alguns minutos, ele percebeu que estava aberta, perplexa. Alguns trejeitos, a forma como articulava os pensamentos, sempre de maneira muito prática. Sim, aquela menina era sua filha.

Ele queria abraçá-la. Desesperadamente. Dar o mundo a ela. Entregar aquela vida a ela. A busca do tempo perdido. E se surpreendeu quando percebeu que ela não pedia nada. Não queria nada. Em verdade, já estava pronta para seguir o seu caminho de volta, de menina independente, sem endereço fixo. Ela só queria conhecê-lo. Enfim, conhecê-lo. Aquele homem que nada mais era que uma fotografia, um nome e um endereço. E que sua mãe jamais havia esquecido.

Ele só não sabia como agir.

Segurou-a pela mão, em silêncio. Aquelas lágrimas sem nome, nem origem, nem explicação chovendo nos seus cantos de olhos, supreendento-o imensamente. E então abraçou-a com ternura, por longos minutos em que ele, não ela, buscou um ombro onde poderia depositar o peso do mundo que habitava os seus pensamentos. Soluçava um pranto inesperado, no colo de sua filha. Da sua filha.

Era a coisa mais simples do mundo, afinal.

Ele tinha uma família, agora.

ILUSTRANDO

Marc Chagall - The Promenade, 1917

PARA VER E OUVIR: ELIS REGINA ("O BÊBADO E A EQUILIBRISTA")

quarta-feira, 21 de março de 2012

ILUSTRANDO

Edward Hopper - "Approaching a city"

terça-feira, 20 de março de 2012

O PREÇO

Uma das lições mais importantes que a minha mãe me ensinou até hoje é que "nada de bom acontece depois das 2 horas da manhã". Segundo este raciocínio, antes que o relógio batesse as duas da madrugada, era hora de estar em casa, em segurança, longe dos seres e eventos obscuros que ganham as ruas da cidade. E ela estava certa.

Mas esta é a história do dia em que eu decidi não seguir esta regra.

* * *
Já havíamos perdido a conta do que tínhamos bebido, na noite em que saímos para comemorar os primeiros grandes acontecimentos das nossas vidas adultas. Ao mesmo tempo, celebrávamos um casamento, uma descoberta de paternidade, a compra de um imóvel, a compra de um automóvel cujo valor beirava os 6 digitos. E, com a minha taça erguida, eu não tinha envolvimento direto com nenhum daqueles eventos.

Na aurora dos meus 30 anos, eu era um cronista do que acontecia na vida dos meus melhores amigos. Narrava, comemorava, me emocionava com aquela abrupta onda de realizações que inundavam as nossas vidas feito um tsunami. E eu flutuava sobre ela, não como um surfista, mas como um náufrago, erguendo-me com sofrimento sobre uma solitária tábua de madeira. Sorria, com honestidade, e não media palavras nem elogios. Mas sentia aquele peso, aquele vazio, que me obrigava à reflexão inevitável: "todos estão acontecendo, menos eu".

Eu acreditava que quando chegasse aos 30 a minha vida já estaria resolvida. "Figured out". Não estava. Eu não era pai, na verdade nem era casado, e nem tinha perspectivas disso no meu horizonte. Não tinha a carreira dos meus sonhos. Não era dono de um imóvel, tampouco de um carro de 6 digitos. Não que isso importasse, verdadeiramente, mas eu me intrigava com a ideia de que não era protagonista de nenhum grande evento da vida adulta. Eu vivia, apenas, mas não construía.

Essa é a história sobre como eu mudaria tudo isso. E, talvez, por isso, seja considerada uma história de amor. Ou de fantasma.

Ou ambos.

Exatamente às 2 horas e trinta de oito minutos - meu relógio não me deixa mentir, já que eu o consultava feito Cinderela às avessas - nos despedimos e cada um seguiu seu rumo. Eu teria de virar à direita e andar algumas boas quadras até o meu apartamento. Poderia tomar um táxi. Ou, simplesmente, poderia virar à esquerda.

Foi exatamente o que fiz.

Como num impulso, segui ao contrário do caminho, sem saber ao certo o que eu estava fazendo, ou para onde me dirigia. Hoje, lembrando de todos os eventos que se sucederam naquela madrugada, é como se houvesse uma linha e eu estivesse sendo puxado, feito um peixe indefeso.

Continuei caminhando, aquele frio da noite entrando pelas calças e gola da camisa, e tive a sensação de que a iluminação da rua começava a perder alguns tons, indo do amarelo ao bege ao cinza. Como se a vida estivesse querendo ficar em preto e branco. Ou quase isso. Foi quando encontrei uma porta vermelha, ao final de uma escada, com os dizeres "entre sem bater". Naturalmente, entrei.

Ali, encontrei um dos ambientes mais inexplicáveis de toda a minha vida. Era uma loja, velha e úmida, como se vendesse antiguidades. Ao mesmo tempo, era uma sala decorada com todo o tipo de item sem utilidade. Poderia ser um pequeno museu, um depósito, ou tudo isso ao mesmo tempo. Ao final, envolta numa penumbra e algo que parecia fumaça de incenso, estava uma mulher. Uma mulher estranha.

Cabelos crespos, olhos amarelados, unhas cumpridas e dedos magros, ela parecia uma bruxa. Com um gesto lento, insinuou para que eu me sentasse à sua frente, numa poltrona coberta de mantos empoeirados. Ela não falou uma palavra e tampouco eu conseguia identificar o contorno do seu rosto. Apenas aqueles olhos amarelos, feito moedas, e as mãos que se projetavam da escuridão. Na dúvida entre o medo e a curiosidade, decidi ficar. E como a minha vida seria diferente se eu tivesse ido embora.

Após minutos - talvez horas - de silêncio, a mulher misteriosa empurrou um envelope sobre a mesa. O papel parecia ter duzentos anos e quase se desfazia nos meus dedos. Tive a impressão que ela sorria. Dentro, nada mais que um bilhete, em letra cursiva, quase desaparecendo:

"Seus sonhos em troca de um segredo.
Ou devolva o envelope e esqueça desta noite para sempre".

E então entendi. Não precisamos trocar nenhuma palavra. Era como se ela navegasse a minha mente. Eu iria conhecer a mulher dos meus sonhos e ela seria o primeiro passo para uma série infindável de eventos que narrariam uma vida de felicidades plenas e conquistas sem fim. O sonho máximo. Desde que eu jamais, em hipótese alguma, confidenciasse aquele segredo a ninguém. Absolutamente ninguém. Desde que ele morresse comigo.

E foi exatamente isso que aconteceu. O amor, os filhos, os imóveis, os carros de 6 digitos ou mais. Uma vida palaciana, que todos querem viver. Uma troca estranha, confesso. Um preço irrisório a pagar. E cumpri meu compromiosso. Ninguém, a não ser esta folha, sabe desta história. E assim será até o ocaso do meu tempo.

* * *
"Existe algo que há anos eu sonho em te confidenciar", ele disse, a voz engasgando, aquela despedida inevitável. Ela o olhou intrigada, por segundos, segurando sua mão com força. O monitoramento cardíaco num compasso preguiçoso, indeciso. E então ele contou, com riqueza de detalhes, a origem de tudo, até aquele dia, entregando-a um velho livro de memórias, de onde caiu um envelope muito velho.

"Você jamais deveria ter me contado o seu segredo", ela respondeu, abandonando a mão dele. Os olhos amarelos, se projetando de uma névoa que gradualmente inundou o quarto do hospital. E então somente sombras, aqueles olhos de gato, e uma mão, de unhas compridas, que o arrastou para o vazio.

Era hora de pagar o preço.

sábado, 17 de março de 2012

FELIZES PARA SEMPRE

"Oh, Deus, eu sei que já faz tanto tempo que não conversamos. Eu fui negligente com as minhas preces, durante todos esses anos, eu sei, e talvez por isso tanto tenha dado errado. Mas peço a Sua ajuda, hoje. Para consertar pelo menos um erro. Pelo menos esse, Deus, pelo menos esse". De punhos fechados, à frente do rosto, olhos cerrados, joelhos doloridos, ele conversava com Deus naquela noite, após tantos anos de silêncio.

* * *

Seus pés sempre ficavam impregnados com a areia do parque. Brincavam juntos, todos os dias. Eram inseparáveis Não tinham pouco mais que seis anos de idade, mas diziam que se casariam e seriam felizes para sempre. Ele e Ela. Aquelas duas crianças felizes. As fotos de final de ano, registrando seus sorrisos que, pouco a pouco, ganhavam novos contornos, novos traços, que vão denunciando que o corpo deseja ganhar novos centímetros. Estavam crescendo.

A vida os separou rapidamente. Mudança de escolas, mudança de endereços, de telefones. Um amor infantil que se perdeu na poeira do tempo. As fotos abandonadas nos álbuns. Envelhecidas. Aqueles sorrisos infantis emoldurados. Aqueles sorrisos inocentes dos dois que se casariam e seriam felizes para sempre.

Na faculdade, num acaso do destino, se reencontraram rapidamente. Um encontro espontâneo, um abraço que parecia colado com cimento; não conseguiam separar os corpos, que pareciam imantados. Aquela felicidade inebriando cada gota do sangue, fazendo o coração trepidar dentro do peito em desespero. "Por onde andavam?", "o que haviam feito?", tantas perguntas, tantas respostas, tanta vontade de atualizar as vidas. Sincronizar as vidas. Namoravam pessoas diferentes à época. "Nos vemos um dia desses".

Não se veriam.

Os anos passando, revirando as folhas dos calendários, feito outono. Dias, semanas, meses, anos, estágios, trabalhos, namoros, quase noivados, separações, loucuras juvenis, viagens para expandir horizontes. E eis que, num dia qualquer, o destino quis que os dois se encontrassem novamente. "Por onde andavam?", "o que haviam feito?", tantas perguntas, tantas respostas, tanta vontade de saber um do outro. 

Encontraram-se brevemente. Um restaurante na beira do mar, um pôr-do-sol se desenhando no horizonte. Um date. Um dia mágico. Compartilhavam memórias como se pudessem parar o tempo. Aquele tempo que era só deles, aquele mundo que era só deles. Uma rajada de vento fazendo guardanapos revoarem, feito gaivotas, até despencarem no mar, desfazendo-se. Riam, quase tocando-se.

Olhavam-se. Aquela vontade desesperada de parlamentar tantas confissões, tantos segredos, tanta história contida, escondida. Aqueles olhos sedentos, famintos. Aquelas mãos desesperadas para se encontrarem. Aquelas bocas secas, ansiosas, atraindo-se incontrolavelmente. Traíndo-se incontrolavelmente. Mas ele sabia que nada deveria acontecer. Dois dias depois ele iria mudar de cidade para trabalhar. "Qual o sentido de começar algo agora?", pensou. "Isso só significaria sofrimento e uma centena de novas perguntas sem solução". Havia um caminho mais fácil para seguir.

E então ele mudou de cidade. Trabalhou, casou, separou. Casou de novo, filhos, apartamentos. Fez aquele circuito que marca a jornada de amadurecimento de um homem adulto. As provações, as privações, as dores, as delícias. Aquelas fotos escondidas que ele revirava todos os anos, como num aniversário, aquelas lembranças, aquele punhado de cartas, de e-mails. Aquelas lembranças fugazes, que ele guardava num canto de sua memória, tocando o peito toda a vez que lembrava dela. Pensava nela todos os dias de sua vida. Aquela lembrança que machucava seu coração, feito uma agulha insistente. Aquelas perguntas constantes, sem resposta, martelando sua sanidade. "E se eu tivesse ficado?", "e se eu tivesse feito diferente?". Jamais saberia.

Os cabelos ganhando contornos prateados. Os ossos, os músculos começando a denunciar a passagem dos anos. Óculos, contas, poupança, noites mal dormidas, problemas, rotina. A vida passando pela janela. Aquela vida boa, feliz, tranquila. E aquele grande vazio que o assombrava. Aquele abismo secreto, que ele não dividia com ninguém. Aquele segredo.

Descobriu, por acaso, que ela havia se mudado para a sua cidade. Era um absurdo, era inacreditável. Mas era verdade. As brincadeiras do destino, que o maltratava feito um torturador. Tantos anos já haviam passado, aquelas décadas que haviam gastado sua juventude, sua capacidade de ser irresponsável. Procurou-a. Acharam-se, afinal. Veriam-se, afinal. Aquele seu "Amor nos tempos do cólera". Aquele seu romance pessoal. Aquela sua história de filme, em que os dois sairiam do restaurante e viajariam o mundo juntos, deixando tudo para trás. Não poderiam mais ter filhos juntos, mas teriam cães, gatos, o que ela quisesse. Uma casa, um barco, um castelo.

Viveriam o tempo que ainda restava, compensando aquela eternidade perdida. Ele engasgava com o pensamento sofrido de que jamais conheceria a juventude dela, jamais teria o sabor de tê-la visto envelhecer. Jamais poderia dizer que acompanhou sua vida na palma de suas mãos, feito livro de cabeceira. Teria aquele tempo que restava e só aquele.

Pediu para o taxi parar rapidamente. Aquela igreja brilhante, despontando em sua janela solitária. "Só uns minutos, por favor". Voltou ao carro confiante, feliz, quase correndo. Ajeitou a gravata, os cabelos. Ainda se achava um homem bonito.

Encontrou-a sentada no restaurante. Uma meia luz iluminando seu rosto, os cabelos levemente prateados, como os seus. Reconheceu todos aqueles contornos, como se o tempo não tivesse passado. Os cabelos escuros, os olhos pequenos, meio infantis. O sorriso doce, aquela boca delicada, a pele fina, frágil. Ela havia envelhecido também, mas o tempo havia sido gentil com ela e o seu coração disparou como se nenhum segundo tivesse passado. Ela estava ali. Seu amor infantil. O amor de sua vida.

Ela se levantou. Cumprimentaram-se cordialmente. Abraçaram-se educadamente. Seus olhos fechados. O perfume, o cabelo dela encostando em sua bochecha. A sensação de tocá-la novamente. Sentir suas costas, sentir os seus braços ao redor do seu corpo. E por alguns mágicos instantes, podia sentir a areia dos intervalos da escola em seus calcanhares. O suor no uniforme. As roupas semi rasgadas da faculdade. Era ela. A mulher que havia passado. A mulher que ele havia perdido para a vida. Ela estava ali, diante dos seus olhos incrédulos, feito uma miragem.

Conversaram por horas. Aqueles risos contidos, disfarçados. Aquela tensão saborosa no ar. As rugas sob olhares curiosos. Elogios à comida, ao vinho. Narrativas de vidas separadas. Casamentos, filhos, carreiras, jogos de adultos. Tanto tempo havia passado. Tanto tempo...

Uma lágrima escorreu, delicadamente, do seu rosto enquanto conversavam. Ela não percebeu. Ele disfarçou com destreza. Brindaram então à vida. Por fim, abraçaram-se uma última vez. Aquela dificuldade em separar os corpos, como se ainda fossem crianças. Olharam-se. Aquelas confissões que a boca não ousa dizer e que os olhos gritam sem pudor. Mãos levemente entrelaçadas, anéis de casamentos distintos, esbarrando-se, feito espadas. Semi sorriso, coração pulsante.

Ele a levou até o carro. Uma despedida educada, carinhosa. Ele sabia que não havia mais tempo nem espaço para um "Amor nos tempos do cólera". Eles sabiam. E acenou, enquanto ela seguia o caminho pela rua, até virar a esquina e desaparecer. Como se fosse embora num barco. Levada rio acima. Para um lugar desconhecido. Uma nova lágrima desenhando uma rua discreta em seu rosto.

Suspirou. E então seguiu seu caminho de volta para casa.

Não se veriam nunca mais.

ILUSTRANDO

"Double Elvis" - Warhol

sexta-feira, 16 de março de 2012

PARA VER E OUVIR: INGRID MICHAELSON ("MAYBE")

ILUSTRANDO

"Garden in the rue Cortot, Montmartre" - Renoir

quarta-feira, 14 de março de 2012

PARA VER E OUVIR: "COME WHAT MAY" (NICOLE KIDMAN & EWAN MCGREGOR)


Todo mundo tem o direito de ficar meio bobo, de vez em quando.

AMOR PLATÔNICO

Cobie Smuders, no papel de Robin, em "How I met your mother". Morena, misteriosa, linda, livre. Robin quer morar na Argentina, não quer filhos, não quer se casar, não quer compromisso. Ela quer cães. 5, 10, 15 cães, se possível. Ela quer se mudar para o Japão, se der na telha. Jornalista, quer voar para onde o vento das notícias a levarem. E eu seria como o pobre Ted, seguindo seus passos, seguindo sua sombra, desesperado em busca de sua atenção. Robin é deste tipo de mulher que merece ouvir "eu te amo" no primeiro encontro. Não culpo Ted. Teria feito o mesmo. Um amor platônico, destes que ficam na pele, meio irrecuperável.

JORNADA

"Journey", nova obra-prima da thatgamecompany não é um jogo, não é arte digital, não é exponência da criatividade. "Journey" é, simplesmente, um milagre.

terça-feira, 13 de março de 2012

PARA VER E OUVI: "JESUS, ALEGRIA DOS HOMENS" (XAVER VARNUS)


Um pouco de Bach, um pouco de jazz, desafiando o impossível.

NUM DIA DAQUELES

"And these days
I wish I was 6 again
Oh make me a red cape
I wanna be Superman"

BROWN PENNY

Brown Penny
William Butler Yeats


I whispered, 'I am too young,'
And then, 'I am old enough';
Wherefore I threw a penny
To find out if I might love.

'Go and love, go and love, young man,
If the lady be young and fair.'
Ah, penny, brown penny, brown penny,
I am looped in the loops of her hair.

O love is the crooked thing,
There is nobody wise enough
To find out all that is in it,
For he would be thinking of love
Till the stars had run away
And the shadows eaten the moon.

Ah, penny, brown penny, brown penny,
One cannot begin it too soon.

sábado, 10 de março de 2012

O ADEUS À ALICE

Alice chegou do trabalho, numa terça qualquer, equilibrando correspondências, chaves e uma pequena sacola de compras; algumas maçãs, alguns ovos, pão. Ao seu jeito, arremessou tudo sobre o pequeno balcão, que separava a cozinha da sala, e foi ao quarto onde começou a se despir. Morava só nesta época. Seu namorado, que ela havia conhecido em Roma, tinha ido embora havia alguns meses e Alice celebrava a dor e a doçura de ter o apartamento só para ela. A vida só para ela. Aquele apartamento pequeno, onde os dois haviam sido tão felizes. Aqueles lençóis que ainda carregavam o cheiro misturado dos dois. Aquelas paredes rabiscadas, testemunhas inegáveis de dias mais leves. Mas Alice já não tinha tanta certeza se havia feito as escolhas certas que a haviam conduzido até ali. 

Em poucas palavras, ela sentia falta dele. Só não admitiria isso jamais - essencialmente porque ela sabia que era inteiramente responsável por sua partida prematura. Por sua fuga. Eles, que achavam que viveriam uma vida juntos. Filhos, velhos, uma vida. Mas nada disso aconteceria, ainda que Alice ocasionalmente suspeitasse que aquela era apenas uma entre tantas pausas naquela sua aventura européia. Como um filme francês.

Na cozinha, começou a organizar suas compras. E em cinco minutos estava sentada folheando as correspondências. Contas, encartes, aquele punhado de coisas desimportantes que ainda encontram remetentes para enviá-las. Suspirava.

Mas eis que algo chamou sua atenção. Algo novo. Algo especial, que paralizou seus dedos, como gelo. Era um postal. Um cartão postal dele. E de longe, muito longe. Um postal cheio de ideogramas - "estaria em que canto do oriente?" pensava - e então viu que os selos eram do Japão. "Então ele havia partido para o outro lado do mundo", pensou. "O mais longe que conseguiu. Se pudesse, talvez tivesse ido para a lua". Era esse o tamanho da mágoa que separava os dois. 

E ela não o culpava.

Em poucas palavras, era o que dizia o cartão. Um fim numa história sem fim. Uma despedida definitiva. Um cartão, uma última carta, um punhado de últimas palavras, escritas à mão - como deve ser - para desejar a Alice que vivesse uma vida plena. Saudável. Que ela fosse mãe, e que fosse cercada de netos. E de cães. E de dias ensolarados. Que ela tivesse um jardim com um pomar onde pudesse abraçar todas as árvores que quisesse. Que ela tivesse um lago, para nadar nua, desafiando a gravidade. Que a vida sorrisse para ela. Que fosse feliz. Até o último instante. 

Ele estaria longe, desaparecendo pouco a pouco, sem deixar vestígio. Mas não deixaria de carregá-la consigo, em algum canto ainda obscuro de seu peito, como uma memória que, quem sabe, talvez conseguisse se manter aquecida com a passagem dos anos. Sem mágoas, sem tristezas. Pelo menos, não mais do que o necessário. Sim, que ela fosse feliz. Verdadeiramente feliz. Ele realmente queria isso. 

"Adeus, Alice".

Sem endereços, sem telefones, sem contatos.

Um último beijo. Uma lágrima solitária. Um cartão postal feito em pedaços.

Um cartão postal colado de volta com cola e esparadrapo.

O adeus à Alice.

sexta-feira, 9 de março de 2012

ILUSTRANDO

O grafite de Ramon Martins

quinta-feira, 8 de março de 2012

"VOCÊ ESTÁ ME... DESMONTANDO?"

Animação (demo) intitulada "KARA", dos criadores de "Heavy Rain" para o Playstation 3. Absurdamente tocante.

PARA VER E OUVIR: JOHN MAYER ("SPLIT SCREEN SADNESS")

quarta-feira, 7 de março de 2012

COMO EU CONHECI ESSE SERIADO

Com praticamente 7 anos de atraso, estou descobrindo "How I met your mother", seriado da CBS sobre um grupo de amigos na casa dos 30 e que vão sobrevivendo, aos trancos e barrancos, à dura missão de existir numa grande metrópole. Para fugir da rotina, encontram-se num bar e compartilham suas frustrações entre risadas e cervejas. No papel principal está Ted, um romântico incurável que narra aos seus filhos, em 2030, como ele conheceu a sua mulher. Nas suas memórias, ele vive em Nova York na companhia de Marshall, Lily, Barney e Robin, amigos inseparáveis e coadjuvantes das suas aventuras, romances frustrados e situações improváveis. Um humor agradável, despretensioso e alegre. O tipo de seriado de situação que me pega de jeito. Acho, porém, que ainda é cedo para dizer isso mas... será que enfim, vou curar minha carência de "Friends"? O tempo dirá.

PARA VER E OUVIR: PINK FLOYD ("US AND THEM")

domingo, 4 de março de 2012

ILUSTRANDO

Paul Gauguin - "Parau Api"

SOMOS ILHAS

"Gostaria de entender porque as mulheres ao meu redor são tão destrutivas", pensa Matt (George Clooney), num momento decisivo de sua vida. Sua mulher, Elizabeth, está num coma do qual não despertará. Sua filha mais velha, Alex, é uma adolescente rebelde e irresponsável. Sua filha caçula, Scottie, é uma criança difícil e temperamental, que começa a causar problemas na escola. Matt precisa aprender a ser pai, quando a vida toda foi apenas o "suplente". No meio do caminho, resolver uma questão burocrática sobre uma venda imobiliária de milhões de dólares do Havaí. E, como se suas mãos já não estivessem cheias demais, ele descobre que sua mulher estava tendo um caso pouco tempo antes do acidente que a levou ao coma.

Em linhas gerais essa é a história de "Os Descendentes" (The Descendants), filme de Alexander Payne (mesmo diretor de "Sideways") e que narra de maneira deliciosa a confusa jornada de um homem de meia idade forçado a repensar - senão refazer - sua vida. 
Pela primeira vez, George Clooney não se leva a sério demais, como um galã irresistível. É, sem dúvida, seu melhor papel até hoje

"Os Descendentes" é a história de um homem só, amedrontado pelo mundo de coisas que parece cair sobre os seus ombros, enfrentando a dura missão de amar, educar (e conhecer) duas filhas que eram praticamente estranhas até a morte de sua mulher. Um filme pequeno, despretensioso, adorável, e que não intenciona contar nenhuma história incrível ou mudar nossas vidas. É um retrato honesto, bonito, de um período turbulento na vida de uma família americana do Havaí. Um esforço conjunto, confuso, em que essas pessoas precisam reaprender que famílias são arquipélagos e que, assim, somos ilhas. Distantes um dos outros, ainda que orbitando uns aos outros.
Uma história como a vida: com as mesmas doses de choro e de riso

Um lindo filme sobre a vida que não é ideal. Sobre como a vida é: com partes iguais de choro, de riso, de lágrima, de dor e de fúria. Sobre o sofrimento de ser um homem só. Sobre o sofrimento de ser uma adolescente. Sobre o sofrimento de ser uma criança. E sobre a delícia de ter pessoas que nos amam ao nosso redor. Porque, sim, a vida pode ser horrível, injusta e assustadora. Mas ela também pode ser uma tarde gostosa, tomando sorvete juntos, sob o calor de uma coberta.

Como ela é, na verdade, na maioria do tempo.

TINTIN E MINHA VIAGEM DE VOLTA

poucas coisas a se dizer sobre a animação "As Aventuras de Tintim - o segredo do Licorne" (The Adventures of Tintin". A primeira delas é que é um crime sem fiança esse filme não ter sido indicado ao Oscar esse ano. A segunda é que é um filme imperdível, warm hearted em níveis quase prejudiciais à saúde, e que me fez ser criança de novo por quase duas horas. Adorável além do adorável. Belo além do belo. Mágico além do mágico. Um tesouro animado que transpira perfeição em casa segundo, cada imagem daqueles personagens encantadores que parecem vivos na tela. Um produto de amor. Um filme que fica.

No coração.

sábado, 3 de março de 2012

A SEREIA

Ele parava por horas, na janela do seu quarto. Olhando o movimento da rua, as pessoas indo e vindo. Carros, animais, folhas de jornal voando no vento. Perdia a noção do tempo ali. Não apenas por ter sempre sido um rapaz distraído, destes que erram endereços, mas porque aquele era o melhor canto do pequeno apartamento. O mais iluminado, ventilado. O lugar ideal para fumar e meditar sobre os problemas, naquela sua fábrica diária de converter o impossível em citações.

Ele era só. Muito só. E sabia disso. Era cercado por pessoas, sim, mas destas desimportantes. Como também eram seus amores ocasionais. Seus amores de microondas. Fáceis, instantâneos, sem sabor. Sentia saudade do tempo em que sentia mais as coisas. Em que seu coração pulsava mais forte. 

Seu corpo era um poeta e acabou se tornando um operário. Operações básicas, automáticas, de mínima complexidade: acordar e dormir; assear-se; vestir-se; comer, beber, fumar; e todas as micro necessidades que permeiam o dia de um homem só: esportes, jogos de adultos, compras, arte, sexo. E um grande vazio que o engolia centímetros a cada manhã. Ele era como Veneza, sendo devorado pelo mar, aos poucos. Só não sentia-se como Veneza. Ele era aquela cidade. Frio, cinza, concreto, real.

Na sua cabeça ainda martelavam as palavras de sua namorada. Sua última namorada. A que realmente havia importado antes daquela série de rostos sem nome - ou nomes sem rosto - que ele acabou esbarrando para se proteger da solidão. Aquelas últimas palavras. E ele sentia aquilo. Ele vestia aquelas palavras. Enamorava-se delas. Aquele amódio que habitava seu corpo. Aquele amorte.

Pegava-se chorando, às vezes, sem perceber. Surpreendia-se com um filete de água, escorrendo o seu rosto. E antes de nomear a lágrima como lágrima, olhava para o teto como se em busca de uma goteira. Então compreendia que seu corpo estava se manifestando. E deixava seus olhos se nublarem e derreterem num punhado de lágrimas sinceras que sempre vinham acompanhadas de soluços sofridos. 

Sentia-se triste. Sabia-se tão triste. E já nem entendia mais onde começava aquela tristeza, onde acabava, e o que era sua própria essência. Enxugava o rosto com o punho da mão fechada, o cigarro dando seus últimos suspiros. Fechava a janela. Voltava a dormir. Tentava dormir. E em suas tentativas incessantes via, todos os dias, os raios de sol costurando tapetes em seu rosto, cama, quarto. Até o dia nascer por completo diante dos seus olhos abertos.

Seu trabalho ainda era elogiado. Alimentava-se disso, como um vampiro. Ele ainda era reconhecido. Ainda era referência. Mas ele sabia de sua mentira. Sentia-se uma mentira. Celebrava-se naquelas ocasiões fugazes, recheadas de risos e conversas inúteis, como as pessoas normais fazem. Sorria, flertava, tocava, fingia. Enquanto ouvia os gritos em seu cérebro. As súplicas para que ele voltasse à caverna. Para que ele se escondesse. O vampiro.

"Serei inesquecível para alguém?", pensava. "Alguém ainda se lembra de mim?". "Verdadeiramente?". Atormentava-se com exercícios diários, feito um monge. Pensava nos colegas de escola, companheiros de trabalho, amores, amigos, amigas, aquelas fotografias mentais; algumas com nome, algumas com sobrenome, algumas sem nada. 

Não sabia se existia. Às vezes achava estar desaparecendo, feito um prisioneiro de algum paradoxo do tempo; como se seu corpo fosse se desintegrar a qualquer momento. Beliscava-se. Criou esse hábito curioso. Precisava saber que estava ali, acordado, inteiro. No metrô, no ônibus, nos restaurantes, lojas, cruzando as pessoas na rua. Beliscava-se. 

Estava ali. Ainda estava ali.

Até que esbarrou no questionamento final. "Qual o sentido?". Escancarou sua janela. Aquela janela apertada, meio secular, onde ele apreciava se sentar ocasionalmente. Sentiu a brisa suja invadindo seu nariz. Aquele cheiro de poeira, de rua. O apartamento pequeno invadido por aquele caleidoscópio de sons caóticos, confusos. Aquele caos urbano, compacto. Então debruçou-se perigosamente, dobrando seu corpo sobre o parapeito. Viu as pessoas pequenas, caminhando lá embaixo, e lembrou das formigas que torturava quando era criança. Lamentou-se disso também. 

Um pedaço longo da cinza do seu cigarro se desprendeu, transformando-se em vento e desaparecendo.

Suspirou de olhos fechados.

E então viu algo. 

Na janela do prédio em frente ao seu, uma menina acenava para ele. Sorridente. Feliz. Iluminada, como um farol. Como se aquela janela contrária fosse o sol, opondo-se à escuridão da sua. Ela acenava, convidativa. Fazia brincadeiras com as mãos e caretas desavergonhadas que o fizeram rir. Cabelos pretos, feito carvão, soltos grosseiramente numa chuva de fios levemente ondulados. E um olhar destemido que o seduziu imediatamente, feito uma sereia. E então ela acenou para que ele fosse até lá. 

A janela de seu apartamento se fechou com violência quase ao mesmo tempo da porta, enquanto ele voava pelas escadas, ainda vestindo um braço do casaco. Passos desencontrados que, a cada degrau, pareciam conspirar contra ele. Mas ao invés de cair ele sentia como se voasse. Porque de repente algo fazia sentido. Mesmo que ele não soubesse o quê exatamente.

Parou diante da entrada do prédio, como um cruzado diante do templo. Sorriu. Ajeitou-se. Buscou o que ainda restava da pessoa que ele fora um dia. Seus romantismos e filosofias. Seus artifícios que o ajudavam a vender-se como o mais interessante de todos os seres. E subiu as escadas ansiosamente. Queria encontrá-la. Precisava encontrá-la. A menina de cabelos escuros e olhos de sereia.

Ela já o esperava com a porta aberta, para saudá-lo. Como se o conhecesse. Como velhos amigos. Antigos amantes. E, num abraço enamorado, cheio de saudade, ele viu que desapareciam. Ele não estava mais lá. Nem ela. Nem o prédio. Aquela fenda no tempo. Aquele segredo urbano. Aquele terreno baldio, aquele velho terreno abandonado, onde um dia um prédio secular fora erguido e derrubado; e onde os dois viveriam para sempre a doçura dos sonhos, felizes cativos dentro de um lapso na linha do tempo. Dentro de uma falha, um equívoco.

Pertencendo a si mesmos e a tempo algum. E tão felizes.

sexta-feira, 2 de março de 2012

PARA VER E OUVIR: JOHN MAYER ("SHADOW DAYS")

BORN AND RAISED

Novo álbum do John Mayer anunciado. Já na lista de efemeridades importantes para maio.

quinta-feira, 1 de março de 2012

AMOR PLATÔNICO

Anna (Felicity Jones), de "Like Crazy" (Como Loucos). Inglesa, inquieta, impaciente, intransigente. Irresistível. Um sopro de vida, de juventude sem medo, uma alma iluminada, dançarina, uma chama incandescente. Alguém para me salvar da rotina - ou de mim mesmo. Alguém por quem eu me mudaria. De cidade, de país, de planeta. Alguém por quem eu ME mudaria. Uma história de amor como nenhuma outra. A história que a gente sonha em viver mas que ninguém vive. A não ser em filme, em livro, em música. Eis aqui um amor platônico diferente. Especial pelas melhores e piores razões deste mundo. Porque é como se eu já a tivesse entregue meu mundo inteiro, minha alma, minha essência máxima, meu melhor. E tudo tenha se perdido, na confusa e melancólica tapeçaria de eventos não planejados da vida. Quando o amor se desfaz feito poeira no vento, simplesmente por deixar de existir. Sumindo, como fumaça. Como mágica. Desaparecendo diante dos olhos. Primeiro você vê. Depois você não vê. Assim amo Anna.

Ou amei.