segunda-feira, 30 de julho de 2012

domingo, 29 de julho de 2012

COMEÇO, QUEDA E RENASCIMENTO


A celebrada trilogia do Batman, de Christopher Nolan, termina de forma apoteótica. A terceira e última parte da sua visão do cavaleiro das trevas, além de ser o melhor dos três filmes, encerra uma saga de heroísmo e provação de maneira surpreendente, ainda que absolutamente esperada (para não dizer sonhada).

A construção deste Batman tão real, verdadeiro e honesto às origens da criação de Bob Kane - a saber, atraído pelo negro, confuso, beirando à loucura, flertando com o caos - é solidamente fundamentada em três grandes filmes que, juntos, criam muito mais que uma mera trilogia. É quase uma ópera em torno da ascensão, queda e renascimento do cavaleiro mais amado do planeta. E a interpretação de Christian Bale dá propriedade e caráter ao personagem. Do mesmo modo que nunca haverá outro Christopher Reeve, permito-me esta heresia, não haverá outro Christian Bale.
Haverá, algum dia, outro Batman como o vivido por Bale?

Em "Begins", a lenda nasce. E, com ela, a visão inconfundível de Nolan

Em "Begins", Bruce Wayne descobre a máscara e, com ela, a luta e o poder que nascem com o medo. O dele, intrínseco, seus fantasmas, seus esqueletos escondidos, suas limitações e fraquezas. E, por fim, daqueles que ele aterroriza por ser a sombra, por ser invisível, por estar em todos os lugares. Batman começa, de fato. Nasce, ascende, como a estrela solitária que mantém Gotham City a salvo todas as noites. Nasce a lenda.
Em "Dark Knight", o cavaleiro das trevas enfrenta seu maior inimigo. E alma gêmea

Em "Dark Knight", Batman é apresentado ao seu maior antagonista e, porque não, sua alma gêmea: o Coringa. Interpretado magistralmente pelo inesquecível Heath Ledger, o Coringa - eterno agente do caos - promove um duelo de titãs que, no malabarismo de forças absurdas de atração e repulsão, promovem uma explosão sem precedentes na cidade. Não há um sem o outro, não há Batman sem Coringa, o espelho que não pode ser quebrado. Duas metades de uma mesma alma atormentada. Inimigo-mor, o Coringa - derrotado - não se submete sem antes ele mesmo devastar o próprio Batman, fisica, emocional e moralmente. Ele cai, sim, mas leva o morcego consigo para o abismo.

O Coringa magistral e inesquecível de Heath Ledger

Em "Rises", Gotham volta a ser uma arena. Para o confronto definitivo

Por fim, em "Rises", o cavaleiro das trevas é um herói esquecido, desorientado, despido, desprovido de máscara, confundido com um bandido. O duelo com o Coringa ainda rende cicatrizes que latejam, em seu corpo e numa cidade devastada pelo medo e a orfandade. Já não se sabe quem era herói e quem era bandido. De uma caverna, sob as sombras que sempre o acolheram, Batman observa o colapso do seu reino. 

Mas eis que uma nova ameaça surge na cidade. Bane (vivido por Tom Hardy), um terrorista mascarado, sem limites para a sua ambição, que transforma Gotham City numa utopia fascista onde os valores são retorcidos até não terem valor algum. A cidade se rende, sob as botas de um monstro, sem ninguém para salvá-la. É quando Bruce Wayne, do conforto de sua mansão, ainda envolto em ataduras em seu corpo e sua mente, decide vestir a capa. É hora de voltar. 
Bane (Tom Hardy), o senhor supremo de Gotham City

Uma ameaça nuclear, ou seja, extrema, definitiva, dá o tom deste combate. Batman contra Bane, duas forças que não vão medir esforços para subjugar uma à outra. Um caminho sem volta, o ato final, o fim definitivo. O final do caminho, de uma jornada de sacrifícios, em que as máscaras voltam a ser nítidas e o morcego em chamas nos céus de Gotham não dá espaço para dúvidas. O cavaleiro das trevas e está de volta. O medo acabou, sim, mas o fim também está próximo.

Desta vez, porém, acompanhado pela Mulher-Gato [competentemente] interpretada por Anne Hathaway, Batman dá os passos finais ao panteão erguido em seu nome. Fiel à essência da ladra apaixonante, sensual, rápida e letal, a Selina Kyle de Hathaway consegue ser parte heroína, parte vilã, parte amante, numa provocação constante que nem o impávido Batman consegue resistir. O cavaleiro sabe que não há mulher no mundo capaz de habitar o seu mundo. A não ser por uma. 
Anne Hathaway é a Mulher Gato. O flerte impossível - e irresistível - do morcego

A lenda então, de sua queda abissal, renasce mito. A capa, aberta, em farrapos, que volta a acolher milhões de almas numa cidade paralizada. O desfecho que, como todo fim, é, em si mesmo, cartarse, canalização de energias, renascimento. Do fogo que consome seu duelo final, o morcego também se mostra uma fênix.

Há uma despedida, claro, seria impossível não haver. Há uma orfandade, novamente. Há uma saudade e um questionamento inevitável. Mas há também uma certeza, vibrante, brilhante, dourada, como o morcego de asas abertas, que olha sobre a cidade, do alto das nuvens.

Batman nunca estará longe demais.


sexta-feira, 27 de julho de 2012

ILUSTRANDO

Joseph Minton - "Cada vez mais próximo"

terça-feira, 24 de julho de 2012

ÀS VEZES...

Dá uma vontade de pegar carona nas asas de pássaros imigrantes. Às vezes.

MUSA

segunda-feira, 23 de julho de 2012

"EM SEU TEMPO, ELES TE ENCONTRARÃO NO SOL"

Primeiro teaser oficial do novo filme do Super-Homem, "Man of Steel". De arrepiar.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

PARA VER E OUVIR: CAT POWER ("GOOD WOMAN")



Bonito que chega a doer:

"Sentirei saudade deste coração tão carinhoso
Amarei esse amor para sempre
E é por isso que vou embora
E é por isso que não posso mais te ver".

quarta-feira, 18 de julho de 2012

ILUSTRANDO

Auto-retrato de Frida Kahlo

segunda-feira, 16 de julho de 2012

NADA EXIGE, NADA PEDE, NADA ESPERA

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de sua presença.
Nada exige ou pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza,
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não.
Ele venceu a dor, e resplandece no
canto obscuro, tão mais velho quanto mais amor.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 15 de julho de 2012

A VIDA RENASCE

Novo comercial da Johnson's Baby. Há muito tempo eu não via uma propaganda tão tocante. Bato palmas de pé para a agência responsável por essa campanha.

DIA DE SÃO SWITHIN

Hoje é dia de São Swithin. Será que chove ou faz sol?

St. Swithin's Day, if it does rain
Full forty days, it will remain
St. Swithin's Day, if it be fair
For forty days, t'will rain no more


*Saudades de Emma e Dexter. Onde eles estiverem.

sábado, 14 de julho de 2012

HISTÓRIAS SEM FIM

A vida é como a Índia, assim nos diz "O exótico Hotel Marigold" (The Best Exotic Marigold Hotel). Repleta de surpresas, emoções, sensações. Resista e você cairá. Aceite o fluxo, siga com ela, e aproveite a jornada, então. 

Se eu tivesse que resumir este filme modesto e despretensioso em apenas uma palavra, eu escolheria sem pensar duas vezes: "lindo". Simplesmente lindo. Deslumbrantemente lindo. 

Transbordando com um elenco estelar de grandes veteranos, como Judi Dench, Bill Nighy, Tom Wilkinson e Maggie Smith, o filme narra a história - ou o "fim das histórias" - de sete idosos que, por uma série de circunstâncias, veem-se rumo à Índia para um hotel luxuoso que servirá como uma espécie de asilo exótico.

E para lá fogem os protagonistas. Fogem da solidão, da viuvez, da doença, dos segredos, da tristeza e se veem num lugar caindo aos pedaços que, como eles, é um lugar ultrapassado, arcaico, condenado, sem esperança. 

A vida é misteriosa, como a Índia. É preciso seguir em frente, resistir é um erro

Rapidamente, a vida vai dando as caras, mostrando novas cores e perspectivas. E deixando claro que não há nenhuma história, por mais perto do fim que esteja, que não se renove, transforme e ganhe novos capítulos ou mesmo se reescreva do zero. 

Eis um filme mágico, comovente, sobre como a existência é misteriosa, como somos criaturas realmente estranhas e como a vida não se cansa de surpreender, deixando claro que não há fim, só começos. Sempre.

ILUSTRANDO

Edward Hopper - "Reclining Nude"

quinta-feira, 12 de julho de 2012

ÚLTIMA CHAMADA

Os dois permaneciam imóveis, seus corpos cansados quase inteiramente submersos naquela água morna, que os envolvia. Sob a água, dois pares de pernas entrelaçadas, de pelos, de peles, num diálogo silencioso que misturava curiosidade e carinho. Uma ternura antiga, com jeito de lar.

Por cima da água, seus olhos em cantos opostos da pequena banheira, num parlamento de pensamentos não confessados. As mãos delicadamente se encontrando nas bordas, equilibrando taças de vinho e charutos numa atmosfera sensual, quase cinematográfica.

Música tocando no quarto, nem alto, nem baixo. Algo para se ouvir de olhos fechados, sem dormir. Algo de vento, algo de chuva, algo de amor, algo de dor que lateja. Dedos se procurando, um quê de desespero. Sim, estavam ali. Ainda estavam ali. 

Trocavam sorrisos, lançavam um ao outro olhares de ternura, de desejo, de provocação. Cabelos úmidos, pingando sobre os ombros, arrepios ocasionais, numa penumbra de sombras e velas que transformavam aquele banheiro numa catedral de uma religião inventada. Aquela fé anônima, compartilhada pelos dois na eternidade daqueles momentos fugazes.

Ele decidia entretê-la. Ela gargalhava, dobrando a cabeça para trás, o cabelo claro, desgrenhado, espalhando-se como tentáculos. Ele avançava em busca do seu pescoço revelado. Empurravam-se, buscavam-se. Abraços, beijos, arranhões sem cortesia. Faziam ondas, maremotos, bagunças, feito crianças.

Havia uma felicidade genuínia que os unia. Uma cumplicidade especialista em libertar borboletas de abdômem. Aquela celebração banal, quase secreta. Telefones desligados, cortinas fechadas, uma cama de lençóis desfeitos havia mais dias do que conseguiam contar. Ou queriam. Sobre a mesa, frutas, queijos, vinho, aquela paixão meio renascentista. E peças e pedaços de roupa espalhados pelo chão, como fragmentos de uma batalha. Testemunhas de uma pressa, de uma ausência, de uma distância.

De uma promessa. 

Pegariam um avião em uma hora, pouco mais que isso. E seguiriam para lados opostos do país. Como faziam havia tantos anos. Aquela despedida iminente. Os sorrisos sofridos, as lágrimas sempre inesperadas, sussurros, abraços mais apertados.

"Até a próxima vez" pensavam. "Quando, onde for possível".

Olharam-se, os corpos nus ainda entrelaçados, úmidos do banho demorado, unidos por um desejo de alma, não só de carne. Mãos tocando ombros, cinturas, pescoços, cabelos. Uma última imagem, um último registro. Uma poesia de sons, cheiros, sabores. Suor, água, unhas. Palavras órfãs, sem frase, promessas que não se cumprem.

Entraram juntos no taxi, como todas as vezes. Aquele cheiro de couro, de coisa usada. Aquele cheiro de saudade anunciada. Mãos entrelaçadas sobre o banco, como namorados, enquanto as luzes da cidade faziam caleidoscópio na janela do carro. Sinais verdes, vermelhos, cães sem rumo, música de rádio, propagandas de produtos desinteressantes. Uma cabeça sobre um ombro. Um carinho no rosto.

"Seria tarde demais?", pareciam pensar em uníssono. "Seria?"

Pediram que o carro desse meia volta.

Era hora de perder aquele voo.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

PARA VER E OUVIR: PABLO ALBORAN ("TE HE ECHADO DE MENOS")

AMOR PLATÔNICO

Emily Blunt. Algo de mutante, de camaleoa, que faz dela um ser meio múltiplo, flutuante, sem formato definido. Ela é a jovem rainha Vitória da Inglaterra e, num passe de mágica, é a assistente de uma temida editora de moda. Ruiva, loira, morena; um rosto marcante, meio máscara, de onde se projeta um par de olhos azuis hipnotizantes. Coisa de água, que dá vontade de pular. Linda, misteriosa, algo de bela e de fera. Mais um amor platônico. 

terça-feira, 10 de julho de 2012

"EU NÃO PRETENDIA TE ACORDAR...

...mas é que eu queria muito te mostrar uma coisa".

ILUSTRANDO

Renoir - "Frau mi sonnenschirm"

domingo, 8 de julho de 2012

PARA VER E OUVIR: PABLO ALBORAN ("SOLAMENTE TÚ")


Alguém para ficar em vista: Pablo Alboran, pop (espanhol) de qualidade com uma pegada cigana incrível.

O PESO DA CAPA

Muitos vestiram essa capa [muitos tentaram]; e alguns até conseguiram. Mas, para mim, Adam West será sempre o Batman definitivo. Do mesmo jeito que nunca haverá outro Superman que não o Christopher Reeve.

sábado, 7 de julho de 2012

sexta-feira, 6 de julho de 2012

ILUSTRANDO

Gustave Caillebotte - "Interior"

terça-feira, 3 de julho de 2012

ILUSTRANDO

Jacques Louis David - "Napoleão em seu escritório"

UM LUGAR PARA VOLTAR

devo ter visto "Darjeeling Limited" (Viagem a Darjeeling), obra-prima, de Wes Anderson um bom punhado de vezes. E me assusto com como a experiência é quase inédita todas as vezes; como se eu não soubesse nada sobre a viagem daqueles 3 irmãos, afastados pelas circunstâncias, em busca de se renovarem e se "reencontrarem" na viagem espiritual mais artificial de todos os tempos. A agridoce essência de Anderson em cada segundo do filme; as relações familiares distorcidas, as figuras materna e paterna idealizadas ainda que absolutamente não-ideiais; as obsessões, ideias-fixas e tudo mais que permeia este filme tão absurdo, surreal e flutuante que preciso (re)ver para acreditar que de fato ele existe. Um filme que figura sempre na minha cabeceira, que me faz sonhar acordado, que transpira inspiração e perfeição. E que usa câmeras-lentas que são simplesmente lindas de morrer.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

2 DE JULHO

Hoje é dia de lembrar que foi preciso derramar muito sangue baiano para que a Independência do país fosse plena. Salve o 2 de Julho!

domingo, 1 de julho de 2012

A MARCHA DA RAINHA NEGRA

Esta é só mais uma história de ninar, como tantas outras, sobre um tempo de heróis e princesas, castelos e batalhas, grifos e dragões. Fragmentos de lendas, misturadas ao longo dos anos, pela língua comum, de modo que já não se sabe ao certo a essência da sua originalidade. Ou mesmo sua utilidade. Uma história sem moral, sem ensinamento. Apenas uma história. E ela começa assim:

A paisagem árida, cinza, melancólica cercava quilômetros ao redor daquela arena. Esqueletos de árvores espalhados por todos os lados, rochas queimadas, apenas chão, apenas barro, apenas cascalho e um vasto céu negro sobre dois vultos dormentes, lado a lado, como amantes.

O grande dragão negro jazia ali, abatido. A cabeça enorme, imóvel, a língua verde musgo, como uma esmeralda fosca, pendendo feito uma cortina entre os dentes afiados como adagas, pingando um líquido viscoso que fazia fumaça ao encontrar no chão. Os olhos cor de âmbar, paralisados, escondidos atrás de pálpebras semi-cerradas. O gigantesco corpo de escamas cor de ônix, duras feito aço, espalhado como uma noite compacta sobre o chão marrom. Aquele colosso. No peito da besta, uma espada cravada, como um broche. Um vapor forte, um cheiro cortante escapando pela ferida aberta pelo aço. Não havia dúvida que o dragão estava morto.

Logo ali, ao seu lado, pequenino, estava o herói desta história. Deitado, imóvel, o peito arfando vagarosamente sob a armadura chamuscada. Onde antes havia aço reluzente restava apenas rasgos num metal queimado, sujo de terra e de sangue. Onde antes havia uma longa capa, pérola e azul, agora estava um trapo rasgado como uma rede de pesca. O elmo, antes orgulhoso, com duas asas adornando as têmporas, agora parecia uma máscara sem forma, fragmentada. E, centenas de metros dali, seu longo escudo, estampado com um leão orgulhoso e o lema "Graça Plena", jazia como uma bandeja velha e imunda.

Ele olhava para o céu, com lágrimas nos cantos dos olhos, incrédulo do seu feito; sorriria se houvesse um músculo em seu rosto que não estivesse completamente exaurido. Fechava os olhos devagar e voltava a abri-los, absorvendo a luz tênue do sol da manhã que começava a banhar os dois combatentes. Aquela luta que, por seus cálculos rápidos, devia ter se arrastado por semanas. E ele até se levantaria para ir embora, caso a sua montaria ainda estivesse viva e se cada osso de seu corpo não estivesse completamente estilhaçado, feito vidro.

A lenda conta que este cavaleiro foi o único herói que conseguiu encerrar o reino de terror da Rainha Negra que, em sua última marcha, havia tomado para si a forma de Zalfatrax, o grande dragão negro. O rei de todos os dragões. Ela havia sido derrotada, até o dia que voltasse para a nova marcha.

Os dias foram se transformando em anos e a história foi virando lenda. As crianças ouviam a narrativa do herói anônimo e ficavam imaginando que forma a Rainha Negra tomaria quando voltasse. "Ela voltará como uma fada, para enfeitiçar todos os homens do reino", diziam algumas meninas. "Ela voltará como uma grande serpente", arriscavam uns meninos. "Ela não voltará nunca mais", diziam os velhos, antes das velas apagadas e dos beijos sobre as testas inquietas. "Pelo menos rezamos todos os dias que não", pensavam em silêncio.

Mas ela voltaria. Centenas de anos depois.

E rapidamente a história correu entre os vilarejos. A Rainha Negra estava de volta e, pouco a pouco, tombavam as torres e castelos. As fronteiras se estreitando, a sombra cobrindo o reino novamente. "Sob que forma ela voltou?", os aldeões suplicavam aos mensageiros. Mas ninguém havia visto quem comandava as hordas selvagens que aterrorizavam o reino. A marcha ganhava cada centímetro do mapa, feito tinta derramada, inundando todos os cantos sob uma névoa tão grossa que quase podia ser tocada. Estava de volta o tempo de culpas e tristezas.

Os exércitos eram dizimados. Soldados sem pernas, sem braços, sem olhos, moribundos, retornando às cidades para narrar novos episódios da marcha. "Ela tem devorado meninos recém-nascidos", diziam alguns. "Ela escraviza as meninas", diziam outros. "Escondam as crianças", todos pareciam concordar.

Até o dia em que ela se revelou. Sombria, os braços compridos como tentáculos. Olhos negros, profundos, abissais, a pele branca como a neve, os cabelos cor de fogo, lembrando serpentes.

* * *

"Os cabelos cor de fogo, lembrando serpentes...", a voz dela, ao seu ouvido o retirou de um transe profundo. Com um salto, ele se virou ao encontro de sua mulher, que lia sua história do seu ombro, como sempre fazia; contra a sua vontade. Pela milésima vez, ele reclamou do hábito impertinente, que tirava a sua concentração e fazia as ideias desaparecerem. Não gostava que lessem nada antes de concluído. Quebrava a mágica, o encanto se perdia.

Ela sorria, como sempre fazia. Um punhado de beijos carinhosos, cócegas e carinhos que derrotavam todos os argumentos. 

"Deseja salvar o documento?".
Não.

O jantar estava na mesa. E ele a acompanhou, rabugento. 

E feliz. É que ele não sabia como terminar aquela história.

PARA VER E OUVIR: BOB DYLAN ("MOST OF THE TIME")


Uma música simplesmente perfeita.

PARA VER E OUVIR: JOHN MAYER ("QUEEN OF CALIFORNIA")

ILUSTRANDO

Georgia O'Keeffe - "Cavalo"