sábado, 8 de dezembro de 2012

ALEMÃES E SOVIÉTICOS

Como aqueles que habitavam o começo de tudo, nós descobrimos juntos o fogo. Dançamos ao redor dele, banhamos os nossos corpos em seu calor e nos queimamos, como crianças inocentes sob o sol. 

Mas também cedemos à sedução de transformar o fogo em pólvora e então em guerra. E nos banhamos na guerra, e no nosso sangue que, rubro em dois tons, transformou-se nas águas em que nadamos ora como almirantes, ora como náufragos. Sucumbimos à batalha naval. Desaprendemos a brincar. Deixamos de ser continentes, viramos ilhas. Viramos as Coréias. 

E então veio o frio. O frio longo. O inverno sem fim. Perdemos a conta, a noção, esquecemos a direção da luz. Passamos a combater no escuro, amigo ou inimigo, pouco importava. O som da respiração ofegante guiando os golpes, o cansaço aproximando os corpos para que, juntos, aguentássemos o frio - nosso armistício pessoal. 

Você e eu. 

Bebemos vinho e veneno, brindamos, embriagamos olhos, corações, almas, para fugirmos dos pensamentos que pareciam cortar a carne, feito cicatriz. Nossas tatuagens. Rasgamos as cartas e os mapas, tornamo-nos sim, crianças perdidas, de uma vez por todas. Esbarrávamos os nossos corpos na multidão, como naquele filme, sem nos reconhecermos. Estranhos. Estranhos? Sim? Não. Sim? Não sabíamos. Seguíamos. 

Uma eletricidade, neta do fogo antigo, era a linha por onde passávamos nossos recados cada vez mais rarefeitos, cada vez mais cifrados. Intraduzíveis. Nosso esquecimento. Nosso desaparecimento. Nosso testamento. Sons, verbo, soltos no vento, na sombra do vento, virando pó, virando astro, coisa celeste, sem começo nem fim. Somente meio. 

Não porque desistimos, nós apreciadores do bom combate. Apenas esgotamos as forças dos nossos corpos novos de almas antigas. Como soviéticos e alemães na fronteira pós-armistício. Já nem sabíamos mais porque continuávamos a lutar. 

Dissemos "adeus" tantas vezes que a sonoridade da palavra já nem remetia a algum significado. Buscávamos estradas, caminhos, mas onde estavam elas? Descobríamos becos e muros e montanhas. Sentados no chão, contemplávamos o cume, sem a menor ideia de como subir. Deitávamos no chão, sob o som das estrelas, sob a água da chuva que disfarçava o peso das nossas lágrimas. Chorávamos com um sorriso no rosto. 

Você e eu. 

Como chegamos até aqui? Não sabíamos dizer. Um espelho cheio de cortes, ou seriam os cortes em nós? Também não sabíamos dizer. Dois corações, que um dia foram um só, batendo de forma esquisita, como duas metades mal cortadas, buscando-se avidamente para voltar a bater como máquina. Mas não conseguíamos achar os encaixes. As pontas, dobras e eixos pareciam lisos, estragados com o tempo e, por mais que tentássemos, as duas metades não conseguiam bater juntas por mais de alguns poucos instantes. 

Diante dos nossos olhos, víamos as metades despencando no chão, como torres implodidas. Aquelas duas metades tristes, como nós, sem já saber como se encaixarem. Como chegamos até aqui? Não sabíamos dizer. Buscávamos as nossas costas, para não precisarmos ouvir bocas e enxergar olhos, nem suas verdades que não queríamos aceitar. 

Buscávamos as nossas costas, pois elas eram amigáveis à cena que montávamos, como duas crianças brincando de cinema. De príncipe e princesa, de dragões e fantasmas, de oceanos e castelos. Até a noite chegar. E precisarmos nos virar, nos encarar, e novamente dizer adeus. Encerrar a paz volúvel. 

Dois punhos cerrados, duas palmas entrelaçadas, sem saber se queríamos a violência dos nossos atos ou o carinho das nossas ideias. 

Você e eu. Como alemães e soviéticos, na reinvenção das nossas fronteiras, na assinatura dos tratados, na construção dos muros. Na declaração de vitória e derrota. Sem falarmos mais uma palavra de um idioma comum, gritando em línguas estranhas as nossas ameaças infundadas de quem esqueceu a paz dos homens. Desesperados por voltar ao lar. Algum lar. Fosse ele qual fosse. 

Gastando as últimas balas. O tic tac do rifle gasto pela ação, estourando os nossos ouvidos como um relógio acelerado. Tic. Tic. Tic. Balas esgotadas, baionetas e bandeiras ao chão, olhos vendados, macas e muletas. 

O que restou de nós? O que permanece de pé ao nosso redor? Nossas catedrais e palácios reduzidos a colunas que parecem chorar seus detritos no horizonte. Nossos monumentos e avenidas, perfurados pelo peso das nossas bombas. Nossos museus e amantes escondidos, desolados. 

Caminhamos incrédulos as ruas por onde andamos felizes um dia, sem reconhecê-las. Já nem lembramos mais onde está a porta de casa. Não conhecemos rosto algum que nos dê direções. Como alemães e soviéticos que só sabem o ofício da guerra, virando fotografia, virando vento, virando tempo, virando nada.

Um comentário:

Anônimo disse...

texto perfeito,magistral.