segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

SANTA MÔNICA

Ele acordou com o som dos seus dedos ao violão. Acordes simples, melodiosos, que combinavam com os seus olhos, abrindo preguiçosamente para aquele novo dia. Não havia sido um sonho. Ou talvez tivesse sido. O fato é que ela estava ali, ainda, olhando pela janela, perdida em seus pensamentos, sussurrando versos quaisquer, sem muita conexão.

"Em algum lugar, em algum lugar no futuro...
Você está lá, em algum lugar."

Ele ficou ali, parado, olhando para ela pelo tempo que pareceu uma eternidade. Seu corpo, a tatuagem pequenina no seu calcanhar esquerdo, curvas bem desenhadas e escondidas sob uma camiseta surrada com a estampa de Liza Minelli. Aqueles cabelos compridos, desgrenhados, escuros feito petróleo; o rosto sardento, os olhos verdes azulados, algo de mar, algo céu, algo de abismo. Ela era linda, feito uma aparição.

De que mundo ela vinha? De que outro mundo?

Havia um santuário naquele quarto bagunçado. Aquele quarto pequeno. As roupas da noite anterior, espalhadas pelo chão, eles ainda tão anônimos. Seu corpo dolorido, o ouvido ainda zumbindo pelo barulho da música há muito esquecida, aquela confusa sensação de fome e embriaguez. Ou seria felicidade em seu estado puro? Ele tinha medo de beliscar o seu corpo e despertar. Mas ela continuava sussurrando à janela, ao seu violão, parando para anotar qualquer coisa num papel.

"Você está lá, em algum lugar..."

Ele lembrava de tê-la carregado, em dado momento; de ter batido o pé no canto da porta e de ter perdido as suas chaves. Ele lembrava de ter rido. De terem rido. Muito. Não sabia exatamente como haviam chegado ali, mas o cheiro dela estava em cada centímetro do seu corpo. Ele já não sabia há quanto tempo estava deitado naquela cama apertada, onde os dois mal couberam horas antes, mas sabia que não queria ir embora dali nunca mais.

O quarto exalava paixão e entrega. Mas exalava também algo rarefeito, passageiro. Como uma coisa provisória. Ela voltaria para casa dias depois, afinal, sem deixar vestígio. Para o seu irmão fuzileiro, seu pai com os seus filmes de caubói e o seu cachorro que, de todos, era quem ela parecia sentir mais falta. Ela voltaria para o seu quintal e os seus amigos. Para beber vinho no mirante. Naquela cidade onde habitavam os seus sonhos. 

Ela olhava, ocasionalmente; um sorriso de canto de boca, um olhar de curiosa intimidade. Covinhas em apenas um lado do rosto. E então voltava à ourivesaria dos seus acordes, olhos fechados, um pé mais afoito, tentando acompanhar o ritmo das mãos ao violão.

"Não quero saber onde você está hoje,
Você está lá, em algum lugar, no final do caminho
Você está lá, em algum lugar..."

Ele continuava ali, deitado, os braços servindo de apoio para o seu rosto, alheio ao fato de estar completamente nu sob o emaranhado de lençois. Contava os sinais do seu corpo, os que conseguia enxergar, os que conseguia lembrar. Fazendo um traçado do dedo do pé à ponta do queixo. Cartografia.

Sentia o gosto de sua boca, o cheiro do seu cabelo, como se estivessem ali há muito tempo. Seu coração palpitava, de empolgação e inconformação. Não entendia a essência destes encontros acidentais e porque tudo tinha que ser sempre tão efêmero. E simplesmente tão bom. Imaginava se ela também sentiria a sua falta.

"Já sinto a sua falta,
Mas você está lá, em algum lugar...
Eu sei que você está"

Ela abandonou o violão e voltou para a cama. Abraçaram-se, entrelaçando novamente os seus corpos cheios de saudade. Ela o beijava com gosto de vinho e cigarro que, naquele momento, era o melhor sabor do mundo. Sua pele estava levemente morna, do contato com a luz na janela, os pêlos dourados erguendo-se ao toque gentil das suas mãos. Ela enchendo-o de beijos, os cabelos dela cobrindo o seu rosto, fazendo-o desaparecer numa selva de árvores negras, densas e onduladas, com cheiro de verão.

Devia ser aquele o cheiro da Califórnia.

Seria para sempre.

* * * 

E então a realidade. Ele sentou na sua estação de trabalho. Uma mão sob o queixo, um longo suspiro, aquela normalidade sufocante. Bons dias educados, café esfriando na mesa, sorrisos amarelos. A monotonia dos ponteiros do relógio narrando a passagem de mais uma hora.

E aquela lembrança... fulminante como um relâmpago. Aquele vestido curto, o par de tênis sem cadarços, um olhar misterioso onde ele se perdeu por completo e o sol brincando de sombras nas pontas dos seus dedos enquanto eles se prometeram voltar a se encontrar novamente.

No final do caminho. Ou em algum lugar qualquer.

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