domingo, 17 de fevereiro de 2013

O LAMENTO DO FALCOEIRO

Ainda eram vivos em seus lábios os beijos da sua mulher; aquele sabor salino, com algo de suor e canela. Aqueles beijos que antecederam ao exílio, à chefia solitária da Rocha, a fortaleza abandonada no final da última estrada que levava ao fim do mundo. Ele deveria ser o Guardião da Rocha, punição sumária pelo crime imperdoável de matar um veado para alimentar a sua família.

O caminho foi longo e tortuoso, cruzando um sem número de vilarejos abandonados e um território cada vez mais inóspito. Tinha a sensação que o mundo ficava mais cinza a medida que avançava; as pradarias ficando para trás e dando lugar a vales escuros onde ele podia jurar que seres o observavam das sombras.

Olhava para o céu, sentindo o sol torrar o seu rosto e secar as lágrimas que escorriam numa torrente pelas suas bochechas. Ainda conseguia ver o rosto aterrorizado do seu filho, sendo entregue para alimentar os tigres e ouvia os gritos desesperados da sua mulher, enviada para a escravidão daquelas que atravessam a vida deitadas.

Chorava, soluçava, esmurrava a sela do cavalo enquanto emitia gritos guturais que não podiam ser ouvidos. A sua única companhia era o seu fiel falcão, com quem caçava todas as manhãs; para quem contava as suas histórias. E a ave parecia escutar com atenção, como se de alguma forma compreendesse o que ele dizia.

O pássaro que levava o nome de seu filho, Mordecai, o mesmo nome do seu pai, do seu avô e pelo menos uma dezena de outros grandes homens antes deles. Homens afinal esquecidos. Como ele era agora.

"Voa, Mordecai, voa!", ele empunhava a ave e a arremessava. E seguiam juntos pelo caminho sem fim.

Chegaram ao destino e perceberam rapidamente que não havia muito ao redor, nada para ser guardado, a não ser as ruinas daquele bastião esquecido, as colunas do que um dia havia sido um salão esplendoroso, as telhas espalhadas pelo chão, as paredes tomadas pelo mofo e por trepadeiras. Restos de móveis e pedaços de coisas incompletas.

Havia grama na altura dos joelhos por todos os lados daquele grande rochedo que se lançava ao mar como a proa de um navio e que evidenciava a existência, num tempo mais que esquecido, de uma fortaleza dedicada a manter o reino seguro de piratas e invasores. A Rocha.

Os dias passavam de forma lenta no rochedo. E eram muitos os dias.

Ele apoiava seus cotovelos nas seteiras para ver o sol se pondo no oceano. Fazia isso todos os dias. A gigantesca moeda, desaparecendo na imensidão azul que os cercava, enquanto o falcão se perdia entre as nuvens, tomando por reino a linha do horizonte. A ave gritava, a plenos pulmões, e ele assobiava de volta.

Aquele triste parlamento entre amigos.

A vida era simples no rochedo. Consertos possíveis, limpeza, o estabelecimento de uma cela limpa onde ele passaria o resto dos seus dias. Caçava, limpava os animais abatidos, cozinhava, costurava, banhava-se num córrego lamacento, onde também pescava e caçava rãs.

Em dias mais felizes achava framboesas que o faziam gritar como se tivesse encontrado um tesouro. No resto do tempo, afiava as suas armas, pensando em vinganças. E lá no alto, cercando os seus pensamentos distantes, estava a ave, Mordecai.

"Você me trará os seus olhos, Mordecai", ele murmurava olhando o seu amigo quase desaparecendo lá em cima, "de todos eles". E era como se a ave o ouvisse, porque sempre respondia a esses murmúrios com um sonoro grito de rapina.

Mas também essas juras o escapavam e ele era vencido pelo tédio naquele lugar onde o tempo corria num movimento diferente. Subia correndo para a murada, a única que ainda estava de pé e erguia o braço, feito um farol.

O falcão então planava em sua direção, com a agilidade de uma flecha e a graça de um dançarino,  as gigantes asas abertas, enquanto encaixava as garras com gentileza em seu antebraço. Olhavam-se profundamente enquanto ele acariciava as suas penas, antes de calçar-lhe o ornamentado capuz de couro vermelho. O falcão parecia agradecê-lo, ele podia sentir.

Voltavam juntos para o alojamento improvisado, onde o pássaro se empoleirava ao seu lado enquanto aproveitavam a fogueira. Comiam juntos coelhos, patos ou o que quer que conseguissem caçar juntos. E juntos adormeciam sob o silêncio das estrelas e o barulho do mar quebrando nas pedras.

Um dia, porém, eles foram surpreendidos por um inverno mais rigoroso e ele sentiu fome pela primeira vez. Quando engoliu a última gota de cerveja quente sentiu medo. Olhou para o pássaro, com o estômago rasgando em sua barriga mas resolveu ignorar aqueles pensamentos absurdos. E adormeceu com a dor que corroía as suas entranhas.

"Você é tudo que me restou, Mordecai".

Pela manhã, saiu cedo para caçar, mas a única coisa que conseguiu matar foi um punhado de sapos. A vida estava cada vez mais difícil no rochedo. Sentou-se com o falcão ao redor da fogueira, abraçando o seu corpo e tentando se aquecer de alguma forma. Sentia os seus o pés cada vez mais distantes e as pernas dormentes enquanto terminava de chupar os ossos pequeninos do último sapo que haviam caçado. Tremia de frio, de fome, de medo, de solidão. Estendia o braço à ave apenas para ser tocado.

Após semanas, notou que as roupas já penduravam como se fossem escorregar a qualquer momento. Foi quando ele compreendeu que estava definhando. Não tinha forças para caçar, ele notou, observando o grande planalto coberto de neve e o horizonte cinza que os cercavam. Mal conseguia ficar de pé. Com dificuldade, caminhou para dentro da Rocha e deitou o seu corpo no chão. A barba já alcançava a altura do seu peito e, através dos seus olhos semi-cerrados, conseguia ver a ave não longe dali.

"Você precisa ir embora, Mordecai, e voar para longe", sussurrou. "Este é o fim".

Novamente as lágrimas despencavam pelo seu rosto, umedecendo a pele seca pelo frio. Pensava na sua mulher, no seu filho e desesperava-se de não conseguir mais lembrar dos seus rostos. Rezava por eles, onde quer que eles estivessem; em breve estariam juntos talvez, mas lamentava não ter conseguido cumprir a sua promessa.

"Vocês não saberão quem eu sou", soluçava, "este velho que me tornei..."

E então fechou os olhos para dormir. Aquele sono profundo do qual jamais acordaria.

A ave Mordecai gritou e gritou e gritou e então planou ao redor da Rocha por horas até pousar delicadamente sobre o corpo do seu mestre, ali, abandonado sob a sombra das paredes esquecidas. Bicou com cuidado a sua pele, tentando acordá-lo, sem sucesso. E ali permaneceu empoleirado, como um guardião.

Até que um dia a ave tombou, caindo gentilmente ao lado do corpo que já havia sido engolido pela neve e pela grama. E também ela fechou os olhos, entregando-se ao silêncio. O último guardião do rochedo.



E o resto foi somente cinzas, vento e salitre. Somente histórias que não são narradas, apenas esquecidas, naquela fortaleza caída, de fantasmas antigos e sussurros melancólicos, onde um homem ensinava a falcoaria ao seu filho enquanto a sua mulher cozinhava coelhos fervidos com nabos e batatas. 

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