sábado, 4 de maio de 2013

MOÇA COM TATUAGEM SEM NOME

Uma alça do seu sutiã, de cor água-marinha, deslizou, delicadamente por cima do ombro, enquanto ela erguia os braços para amarrar os cabelos castanhos avermelhados num rabo de cavalo preguiçoso. Ela vestia uma camiseta regata velha e um par de shorts curtos que revelavam pernas de desenho bonito, onde uma tatuagem curiosa habitava a sua batata direita. Uma daquelas dançarinas havaianas. Aquelas dançarinas sensuais, com saias de folhas e colares coloridos, que tinham um nome, ele sabia, ele sabia. Só não conseguia lembrar qual.

E ele ficou ali, observando uma gota de suor solitária que percorria um caminho sinuoso do cotovelo dela até se perder para sempre em sua axila. Ela sorria, num misto de alegria, gratidão e certo desconforto - destes que se sente quando se recebe ajuda de um estranho. E, como ambos seguiam naquela mesma direção, decidiram voltar a correr juntos. Porque não?

* * * 

Minutos antes ele a encontrou ali, no meio do chão, como se ela estivesse se sentindo mal. As mãos espalhadas, como se fosse estampar o seu nome na Calçada da Fama. Ele interrompeu a sua corrida, retirou os fones de ouvido e foi ao encontro da moça estranha no meio do seu caminho. 

Mas ela não estava passando mal. Havia apenas deixado cair uma chave na grama e precisaria dela para voltar para casa, sem ter que se submeter ao suplício de convocar um chaveiro. Mais, antes disso, achar alguém com um telefone. E possivelmente dinheiro. Em resumo, ela precisava achar aquela chave. Seria simplesmente mais fácil.

E os dois ficaram ali, ajoelhados no chão, como duas crianças brincando na areia. Ocasionalmente se olhavam, sorrindo, aquele estranho e absurdo encontro de estranhos. Sequer haviam dito os seus nomes, ele então percebeu; apenas procuravam por uma chave pequena, pouco menor do que um polegar, fina e dourada. E solitária.

Ele achou que não lhe cabia questioná-la sobre não usar um chaveiro ou acomodar melhor uma chave tão importante. Preferiu calar e apenas ajudá-la.

O sol esquentava as suas costas enquanto ele garimpava de mãos livres entre grama, pedra e, basicamente, sujeira. Mas isso não importava - não naquele momento. Porque havia algo bonito naquilo ali; em estar ali. Em ajudar aquela estranha a encontrar a sua chave. Algo que ele poderia escrever a respeito depois. Daria nomes aos dois, um passado - talvez um futuro? -, uma história enrolada na casualidade daquele encontro matutino, com cheiro de rua e som de música abafada, ecoando do seu tocador não desligado.

"Eu amo essa música", ela dizia ocasionalmente, quando reconhecia uma de suas canções. E cantarolava um trecho ou outro.

Ao que ele, pela terceira ou quarta vez, lembrava que não havia desligado o aparelho.

"Deixa ligado", ela sorria, "é sempre melhor com música. Qualquer coisa é sempre melhor com música"

Ela era bonita, ele pensava. Bonita para ele, pelo menos, com seus braços finos, povoados por uma fina penugem dourada, e dedos delicados, olhos expressivos sob grandes sobrancelhas e nariz aquilino; aqueles traços beduínos que chamavam a sua atenção, não havia jeito. E ele gostava de observá-la procurar pela sua chave, alheia ao seu observador. Ela mexia na grama sem cerimônia, sem receio de estragar as unhas, fazendo a sua dançarina havaiana dançar todas as vezes em que ela pulava, como uma gata, certa de ter encontrado o que procurava.

"Rá!", ela gritava. Mas era em vão.

Talvez pela extensão de uns vinte minutos os dois ficaram ali, crianças sob o sol, procurando por uma órfã chave dourada. Usaram a ocasião para uma troca de efemeridades educadas, como endereço, cidades-natais, profissões, prazeres e planos para o domingo. E ela ria das bobagens que ele dizia para preencher os silêncios que surgiam abruptamente. 

"Poderia ser a sua aliança de casamento", ele a interrompia. "Pensa como seria difícil de explicar".

"Ou dinheiro", ela sorria. "Acho que eu ficaria mais triste de perder dinheiro".

Os dois sorriam, num parlamento sem frases, e voltavam a procurar.

Eventualmente, a chave surgiu brilhante por entre os seus dedos. E ela gritou, radiante, como se ele tivesse achado um tesouro. Ele limpou o objeto na barra da sua bermuda e entregou de volta, depositando-a cerimonialmente sobre a palma da mão dela, com um sorriso gentil e uma mesura cortez, já se despedindo. 

Mas os dois estavam correndo na mesma direção, ela observou. Decidiram continuar a correr juntos e, na extensão de mais um bom punhado de minutos, seguiram em silêncio, sob o compasso dos dois pares de pernas que ganhavam a calçada com uma sincronia própria daquele encontro; delicadamente descoordenada. 

Ocasionalmente ela virava o rosto e oferecia um sorriso, embora na grande parte do tempo seguisse séria pelo percurso, com o seu rabo de cavalo vermelho rodopiando atrás da sua cabeça e a dançarina havaiana mexendo em sua batata.

E ele seguia, ao seu lado, com a sua música servindo de trilha sonora daquele encontro improvável. Vez ou outra seus olhares e sorrisos se entrecortavam e o seu coração engasgava por uma fração de segundo; e ele ficava na dúvida se era somente pelo esforço físico. 

Ah, a beleza dos encontros improváveis.
Ah, à beleza dos encontros improváveis.

Brindaram com água de coco de caixinha, longe de estar gelada, após aquela dança. Bochechas rosadas pela corrida, o suor  grudando o cabelo atrás do pescoço e, como no filme, ele pensou se ela acharia esquisito se ele a beijasse ali, naquele momento.

"E se nós estivermos em algum lugar do futuro?", ele pensou, "E estes outros nós, aqui, agora, formos meramente matéria das nossas lembranças? Então que mal haveria em te roubar um beijo?".

Aquela agridoce metafísica.

Abraçaram-se. Mais demoradamente do que a etiqueta de um encontro como aquele permitiria e se prometeram correr juntos novamente. No domingo seguinte, talvez, como saber? Deram-se as costas. E então desapareceram, no emaranhado de caminhos anônimos que os cercavam.

"Dançarinas de hula", ele então lembrou. "Dançarinas de hula"

E sorriu, enquanto seguia seu caminho de volta para casa.

Nenhum comentário: