domingo, 2 de fevereiro de 2014

O DESPERTAR DE MARIA

Maria despertou com um susto; engasgando com a sua própria saliva, o travesseiro num charco de suor. O pesadelo ainda estava vivo, flutuando sobre os seus poros abertos, e o silêncio da madrugada fazia aquelas imagens pulsarem em sua mente como coisa viva. 

De repente, de uma hora para outra, ela era uma mulher de meia idade, infeliz, aprisionada num casamento medíocre, numa vida sem finalidade, vivendo a eternidade de dias iguais, repetidos. Olhava o seu rosto no espelho, flácido; as mãos enrugadas, o cabelo seco, quebradiço. O corpo sem forma. 

"Quem é esta mulher no espelho?", perguntava-se em desespero.

O terror daquele sonho é que ela não tinha noção de que cadeia de eventos a tinha conduzido até ali. Nas suas memórias mais recentes, ela estava tomando banho de cachoeira com as suas melhores amigas. Os corpos na flor da idade, escondidos por roupas de banho minúsculas. Os beijos inocentes nos  meninos; as músicas, as danças, os cigarros roubados. Os braços de Michel, do lindo Michel, envolvendo o seu corpo enquanto atravessavam a rua, imprudentes. O seu cabelo desgrenhado, a camisa listrada, a alegria de ser jovem e irresponsável. Era aquela a sua vida.

Respirou fundo, numa tentativa de acalmar o seu peito. E caminhou lentamente até o banheiro, de olhos fechados, como num filme de terror. Tinha medo de abri-los e descobrir que não era um sonho. Acendeu a luz e então encarou a realidade. 

Um suspiro de alívio tomou conta do seu corpo, feito remédio.

Era ela. Ainda era jovem, linda, com uma vida inteira pela frente. Naquele quarto imenso, da casa dos seus pais, num emaranhado de vestidos e sapatos espalhados pelo chão; da noite anterior, antes de sair com as suas amigas. 

"Eu devo ter bebido demais", sussurrou para si mesma. 

Caminhou pelo quarto, ensaiando passos de dança, tomada por uma felicidade genuína; aquela sensação de eternidade que embriaga tanto quanto bebida. Maria tinha a vida pela frente, novamente, feito um milagre; para fazer as melhores e piores escolhas. E uma eternidade de anos que nunca passariam.

Mas havia algo estranho, que ela insistia em não admitir para si mesma.

Aquele não era o seu quarto.

Abriu os olhos com um susto. Olhou para o lado, para encontrar o seu marido num sono profundo. Pulou da cama e correu para o banheiro, acendendo as luzes com desespero. E se olhou, como se nunca tivesse visto o seu reflexo antes.

"Meu Deus, esta sou eu". 

Tocava o seu rosto, numa tentativa infantil de se beliscar para acordar. Em vão. A única coisa que conseguia era deixar suas bochechas vermelhas. Então percebeu a torrente de lágrimas que despencava do seu rosto, numa tempestade de tristezas; da constatação do inevitável. Ela era aquela mulher infeliz, de meia idade, aprisionada numa vida que já tinha passado.

"Por favor, Deus, por favor, me faça acordar".

Sentou-se no vaso, engasgando na sua angústia, sentindo um desespero esquizofrênico, repentino, que havia tomado-a de assalto. É como se ela tivesse percebido que não tinha registro da sua vida. Ela havia despertado para aquela constatação. 

"Por favor".

Caminhou cabisbaixa de volta para a cama; os pés arrastando no chão. O rosto ensopado de lágrimas e suor, o cabelo grudando no rosto; como se estivesse derretendo. Então sentiu uma mão em seu ombro, puxando-a com força. Virou-se como se a vida estivesse em câmera lenta e ficou cega por um milésimo de segundo, quando uma luz branca tomou conta de tudo ao seu redor. 

"Vovó, você estava tendo um pesadelo", a menina dizia ao pé da sua cama.

Maria abriu os olhos, lentamente, e se descobriu naquele quarto de tantas décadas; tomado por fotografias e cheiro de coisa envelhecida. Sentou-se, com dificuldade, e acariciou a menina no rosto. Lembrou de Michel, das cachoeiras, dos cigarros, da música, da dança. Suspirou, de olhos fechados, por alguns instantes.

Lembrou de tudo.

"Agora eu já despertei", respondeu. 

A menina estava certa. Tudo aquilo havia sido um pesadelo.

"Mas passou".

"Passou".

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns ,me arrepiei .