terça-feira, 5 de agosto de 2014

UMBRA


"Aceita café?", a mulher perguntou, interrompendo os seus pensamentos deslocados. Aquela mulher esquisita, os cabelos ressecados por luzes, os dentes sujos de batom, a roupa apertada demais para o seu corpo. Ela transpirava clichês. Como aquele lugar inteiro. Puro clichê.

O investigador particular saiu do banheiro, enxugando as mãos na calça, sentando-se com um suspiro curto. O cabelo ralo, os dentes amarelados por causa de cigarros em excesso, o terno barato e puído, a gravata de tom duvidoso.

"Meu Deus, que diabo eu estou fazendo aqui?".

O homem retirou um envelope pardo, de dentro da gaveta, e depositou-o quase cerimonialmente sobre a mesa. Alisava o papel com as duas mãos, como quem prepara uma massa fina numa pastelaria. Os olhos fixos no seu cliente, aquele silêncio longo demais, já constrangedor.

"Você não vai gostar de ver o que está aqui, rapaz", disse, por fim.

O sol lambia gentilmente a janela mofada daquele trágico escritório encravado no centro da cidade. Aquele cheiro de papel velho, poeira, jornal, nicotina, perfume barato. O som do ventilador velho ralhando, as flores de plástico, a pequena televisão ligada num programa popular de TV. O dia começava a dizer adeus enquanto ele estava ali, diante do investigador, e do envelope que já nem sabia se queria abrir.

Com um gesto curto, alcançou o envelope e folheou a série de fotos que havia dentro dele. Datas diferentes, dias diferentes, roupas que ele mesmo lembrava de tê-la visto usando. Sua mulher, e uma coletânea que escancarava a sua infidelidade. Chegava a ser patético. Ele. Ela. Ambos. Patéticos. 

"Um rapaz bonito que nem você", a secretária gralhou ao fundo, "ficar com uma vagabunda como essa"

Ele sorriu, amargo, em direção à mulher.

"Essa aí não vale um centavo, amigo", o investigador intercedeu. "Mais de vinte anos que trabalho nisso e nunca sei o que dizer nessas horas", suspirou. "Mas essa aí não vale nada, isso eu te garanto".

"Piranha ordinária, prostituta!", a mulher ainda gritava, inconformada.

Ele permaneceu ali, as fotos empilhadas sobre o seu colo, no que pareceu uma eternidade. Sentiu uma melancolia profunda, sentiu-se decadente, frágil. Não era o adultério em si, a sujeira, a mentira. Não era isso, necessariamente. Era o somatório das coisas, o caleidoscópio de lembranças, os arrependimentos que vinham sufocá-lo como uma onda gigante no mar. 

Olhou para o escritório, as paredes decoradas com quadros comprados em supermercado, o investigador em silêncio, com as mãos cruzadas sobre a mesa, a secretária ainda mexendo a cabeça em negativa, o som de uma discussão entre pessoas no programa de auditório. 

"A gente vê tristeza demais aqui", a mulher ainda falava, "chega uma hora que cansa!".

Ele continuou em silêncio. A verdade é que nada daquilo o surpreendia, afinal; e essa era a sua maior surpresa. Tavez fosse preciso apenas a concretude das coisas; a visão do óbvio, a imagem do que ele sempre havia suspeitado. Abriu a carteira, sacou algumas notas e pagou o que devia. O investigador pegou as notas e, sem contar, guardou na gaveta.

"Você sabe o que vai fazer com isso, rapaz?", o investigador perguntou, quase paternal.

"Por hora, nada", ele respondeu.

Apertou a mão do investigador, acenou para a secretária e, com o envelope sob o braço, caminhou em direção a porta daquele canto esquecido do mundo. Levou as fotos até uma lata de lixo, um lugar mais do que adequado, e num gesto discreto, ateou fogo na imundície.

"Por hora, nada".

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