sexta-feira, 19 de junho de 2015

UM HOMEM QUEBRÁVEL


Na última vez que eu sai para correr, era uma dessas manhãs esquisitas, com sol e frio, em que você não sabe ao certo se choverá ou se você vai morrer de calor. Mas eu estava ali, como gostava de fazer ocasionalmente; melhor dizendo, quando a preguiça não obtinha o melhor de mim. 

Ao pisar na rua, me agradava aquela sensação de liberdade, o suor escorrendo pela testa, os cabelos ensopados, o compasso da música no ouvido que se confunde com o compasso dos pés no chão duro. Os obstáculos, os sinais, as pessoas, os bichos, os carros. 

Eu e apenas eu. A solidão que é correr na rua, capturado pela coisa meio catártica do exercício. Não é por saúde, nem por estética. Nem por gostar de correr. Como a Fernanda Young, gosto sempre de dizer que "eu corro porque sou triste". Ou pelo menos eu corria. 

O fato é que, até hoje, eu não sei ao certo exatamente o que aconteceu. Não me considero uma pessoa distraída - pelo menos não perigosamente distraída. Me perco em meus pensamentos? Sim, claro, o dia inteiro. Flutuo, vagueio, desapareço até alguma coisa me puxar de volta. Não era o caso.

De repente vi o meu corpo girando, as minhas costas golpeando vidro e metal, aquele barulho de coisa quebrada, de pneu arrastado no asfalto, o céu virando ao seu redor e você deixa de saber exatamente onde é em cima e onde é embaixo. Até se ver com o seu rosto no chão. A respiração pesada, o coração a galope e aquele pensamento "o que acabou de acontecer?".

Mas eu estava bem. Eu enxergava, eu respirava, eu me mexia. "Estou vivo. Acho". E então as pessoas, os olhares, a confusão, aquele mar de gente anônima que quer olhar e ajudar. Arrastei meu corpo para a calçada, com as mãos, já contabilizando os arranhões, o sangue escorrendo no lado do rosto, a dor pulsando nos braços e nas costas, aquela sensação de vazio e impotência. Uma vontade de chamar por alguém. De chorar. A constatação devastadora da minha fragilidade. 

As luzes da ambulância, vibrando vermelho e amarelo e branco, camufladas sob a chuva fina. As mãos alienígenas me carregando para dentro, o trajeto, a jornada, o socorro. O teto branco, frio, impessoal sobre os meus olhos. O barulho de sirene. Algum entorpecimento, a vontade que nada daquilo fosse real. Ou que acabasse logo.

O mais estranho de tudo foi o anonimato do meu acidente. Como se ele nunca tivesse acontecido. 

"Você gostaria de avisar alguém?"
"Não".

Não quis te chamar. Sei lá, talvez eu devesse ter chamado, mas no meu ímpeto em ser tão prático e racional, eu decidi que era cedo demais para isso. Acho que me acostumei tanto em ser só que, mesmo naquele momento, não quis importunar ninguém com meus imprevistos.

Mas você achou um jeito de descobrir, deve ser desse seu faro de leoa, que descobre minhas estripulias e me pega no pulo. Mas seu beijo, seu abraço, seu carinho me fizeram compreender que a gente não pode ser acostumar em ser tão só assim. E eu senti um bálsamo sem nome ao te ver, aflita, me olhando da porta.

Fechei os olhos, adormecendo. Acordei com o toque de uma mão feminina, investigando, tateando meu corpo que podia bem estar em pedaços. Talvez estivesse. Eu sentia tanta dor, de corpo, de osso, de alma. Me resignei, respondi algumas perguntas de pouco pensamento, perguntei onde estava a minha carteira, documentos, cartão de seguro. Pediram para que eu apenas ficasse deitado. Consenti.

O caos daquela manhã estranha me trouxe um acidente que me arremessou contra a parede da minha própria solidão. Descobri como sou quebrável. O saldo? Alguns cortes, alguns pontos, manchas roxas, amarelas, como se eu tivesse voltado da guerra. E a perna esquerda quase inutilizada, partida em 3 pedaços, e que ainda hoje me faz acordar com a dor e, feito veterano, me obriga a mancar contra a minha vontade. 

Eu sempre me considerei um homem quebrado. Engraçado ver a ironia de tudo isso.

E não pude correr nunca mais. 

Nenhum comentário: